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FERNANDO GABEIRA
Como dizer "Feliz Ano Novo" em africano
Hesitei muito em escrever
este artigo. É necessária
uma dose de otimismo no princípio do ano. Mas, nesta época,
grandes sacanagens são feitas,
exatamente porque desaparecem
no meio do clima geral de festa.
Algo feito entre o Natal e o Ano
Novo contra um bloco de países
pobres, a maioria africanos, desaparece tão rápido quanto os perus
natalinos. Mas pode ter uma repercussão humana, em termos
numéricos, semelhante à de um
Holocausto por ano, contando como base 6 milhões de mortos.
Por iniciativa norte-americana,
foi bloqueado um acordo em Doha (Catar) que permitiria aos
países pobres a importação de remédios genéricos para atacar três
pandemias: Aids, tuberculose e
paludismo. A medida beneficiaria 120 dos 133 países em desenvolvimento.
O texto permitia também que
alguns países pudessem fabricar
os genéricos a preços mais baixos,
como já fazem Índia, Brasil e
África do Sul. Mas a importação
dos genéricos pelos 120 países que
não conseguem produzir os remédios representava uma chance de
tratamento para 99% dos portadores de Aids na África.
Apesar de o Brasil ter se empenhado para que esse acordo fosse
assinado, o retrocesso não teve
muita repercussão por aqui. Jornais como o "Le Monde" escreveram editoriais indignados. O Brasil, entretanto, teria melhores
condições de protestar.
No lobby realizado pelos grandes laboratórios, eles alegaram
que os genéricos poderiam ser exportados com objetivo comercial
e poderiam até ser desviados para
a Europa, causando concorrência
desleal. Mas os próprios lobistas
centraram fogo na Índia, reconhecendo que o Brasil produziu
genéricos para resolver os problemas de sua própria população,
sem avidez mercantil.
Além de termos um plano de
combate à Aids internacionalmente reconhecido e de sermos
produtores de genéricos com a finalidade de privilegiar a vida
diante das patentes comerciais,
estamos assistindo a um enorme
escândalo humanitário. Os interesses comerciais bloquearam a
possibilidade de sobrevivência de
milhões de africanos.
E o problema não é apenas a
pandemia: ativistas da causa
africana, como Bob Geldof, publicaram no Natal alguns dos prognósticos para 2003, mostrando
que 30 milhões de africanos devem passar fome durante o ano.
Se somarmos os 30 milhões de
famintos com os 25 milhões de soropositivos, veremos como é dura
a realidade de um continente que
está sendo deixado para trás numa visão de globalização como a
que prevalece na OMC (Organização Mundial do Comércio).
É curioso como a posição oficial
americana se deixou levar pela
grande indústria farmacêutica.
Ainda mais se lembrarmos que,
em 2001, o governo Bush aceitou
a possibilidade de importação de
genéricos pelos países pobres. Naquele momento, Bush ameaçava
a Bayer de ignorar sua patente se
o preço do Cipro não baixasse. Os
EUA estavam sob o impacto das
cartas com pó de antraz.
Bush deixou claro então que a
luta contra o terrorismo passava
pela solidariedade internacional.
Da mesma forma, a luta contra a
devastação do povo africano deveria superar as grandes pretensões comerciais, mesmo que isso
representasse perda de lucros.
A revista "Foreign Affairs" acaba de publicar um estudo mostrando como a Aids está se instalando perigosamente na Ásia e na
Rússia, revelando que a pandemia tem futuro naquelas regiões.
Não adianta Bill Gates doar alguns milhões de dólares para o
combate à Aids na Índia se o governo americano não souber representar estrategicamente o interesse capitalista.
A idéia de deixar morrer os africanos para preservar algum lucro
é fascinante do ponto de vista do
capitalista individual, mas estúpida do ponto de vista do conjunto. Mais estúpida ainda é a suposição de que o crescimento da
Aids nos continentes mais pobres
é um problema dos pobres e dos
negros que vivem em remotas regiões do planeta.
Além do escândalo de priorizar
a propriedade intelectual à vida,
essa decisão garante US$ 50 bilhões aos grandes laboratórios,
mas empobrece radicalmente a
humanidade.
Num tempo de quase guerra, os
americanos talvez estejam querendo se concentrar no Iraque e
na Coréia do Norte.
Mas o governo brasileiro terá de
comandar as reação dos países
que ficaram sem possibilidades de
combater a doença em seus povos
e vislumbrar as injustiças do
mundo globalizado.
Mesmo que possamos produzir
nossos genéricos, é fundamental
um elo de solidariedade com os
países mais pobres e, sobretudo,
um programa concreto em comum com Angola e Moçambique.
Será um trabalho diplomático,
difícil, mas que revela um espaço
para nós nas dramáticas circunstâncias de 2003.
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