São Paulo, segunda-feira, 30 de dezembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Como dizer "Feliz Ano Novo" em africano

Hesitei muito em escrever este artigo. É necessária uma dose de otimismo no princípio do ano. Mas, nesta época, grandes sacanagens são feitas, exatamente porque desaparecem no meio do clima geral de festa.
Algo feito entre o Natal e o Ano Novo contra um bloco de países pobres, a maioria africanos, desaparece tão rápido quanto os perus natalinos. Mas pode ter uma repercussão humana, em termos numéricos, semelhante à de um Holocausto por ano, contando como base 6 milhões de mortos.
Por iniciativa norte-americana, foi bloqueado um acordo em Doha (Catar) que permitiria aos países pobres a importação de remédios genéricos para atacar três pandemias: Aids, tuberculose e paludismo. A medida beneficiaria 120 dos 133 países em desenvolvimento.
O texto permitia também que alguns países pudessem fabricar os genéricos a preços mais baixos, como já fazem Índia, Brasil e África do Sul. Mas a importação dos genéricos pelos 120 países que não conseguem produzir os remédios representava uma chance de tratamento para 99% dos portadores de Aids na África.
Apesar de o Brasil ter se empenhado para que esse acordo fosse assinado, o retrocesso não teve muita repercussão por aqui. Jornais como o "Le Monde" escreveram editoriais indignados. O Brasil, entretanto, teria melhores condições de protestar.
No lobby realizado pelos grandes laboratórios, eles alegaram que os genéricos poderiam ser exportados com objetivo comercial e poderiam até ser desviados para a Europa, causando concorrência desleal. Mas os próprios lobistas centraram fogo na Índia, reconhecendo que o Brasil produziu genéricos para resolver os problemas de sua própria população, sem avidez mercantil.
Além de termos um plano de combate à Aids internacionalmente reconhecido e de sermos produtores de genéricos com a finalidade de privilegiar a vida diante das patentes comerciais, estamos assistindo a um enorme escândalo humanitário. Os interesses comerciais bloquearam a possibilidade de sobrevivência de milhões de africanos.
E o problema não é apenas a pandemia: ativistas da causa africana, como Bob Geldof, publicaram no Natal alguns dos prognósticos para 2003, mostrando que 30 milhões de africanos devem passar fome durante o ano.
Se somarmos os 30 milhões de famintos com os 25 milhões de soropositivos, veremos como é dura a realidade de um continente que está sendo deixado para trás numa visão de globalização como a que prevalece na OMC (Organização Mundial do Comércio).
É curioso como a posição oficial americana se deixou levar pela grande indústria farmacêutica. Ainda mais se lembrarmos que, em 2001, o governo Bush aceitou a possibilidade de importação de genéricos pelos países pobres. Naquele momento, Bush ameaçava a Bayer de ignorar sua patente se o preço do Cipro não baixasse. Os EUA estavam sob o impacto das cartas com pó de antraz.
Bush deixou claro então que a luta contra o terrorismo passava pela solidariedade internacional. Da mesma forma, a luta contra a devastação do povo africano deveria superar as grandes pretensões comerciais, mesmo que isso representasse perda de lucros.
A revista "Foreign Affairs" acaba de publicar um estudo mostrando como a Aids está se instalando perigosamente na Ásia e na Rússia, revelando que a pandemia tem futuro naquelas regiões. Não adianta Bill Gates doar alguns milhões de dólares para o combate à Aids na Índia se o governo americano não souber representar estrategicamente o interesse capitalista.
A idéia de deixar morrer os africanos para preservar algum lucro é fascinante do ponto de vista do capitalista individual, mas estúpida do ponto de vista do conjunto. Mais estúpida ainda é a suposição de que o crescimento da Aids nos continentes mais pobres é um problema dos pobres e dos negros que vivem em remotas regiões do planeta.
Além do escândalo de priorizar a propriedade intelectual à vida, essa decisão garante US$ 50 bilhões aos grandes laboratórios, mas empobrece radicalmente a humanidade.
Num tempo de quase guerra, os americanos talvez estejam querendo se concentrar no Iraque e na Coréia do Norte.
Mas o governo brasileiro terá de comandar as reação dos países que ficaram sem possibilidades de combater a doença em seus povos e vislumbrar as injustiças do mundo globalizado.
Mesmo que possamos produzir nossos genéricos, é fundamental um elo de solidariedade com os países mais pobres e, sobretudo, um programa concreto em comum com Angola e Moçambique. Será um trabalho diplomático, difícil, mas que revela um espaço para nós nas dramáticas circunstâncias de 2003.



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