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CRÍTICA
A princesa e a república
HÉLIO SCHWARTSMAN
NO QUE considero uma das mais inspiradas
passagens da literatura universal, Tolstoi escreveu: "Todas as famílias felizes se parecem entre
si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira" ("Ana Karenina", 1, 1). Por trás de cada família infeliz, há uma história, um romance inteiro, houvesse um
escritor russo para desenvolvê-lo. "Se queres ser universal, canta a tua aldeia."
Como a pobreza quebra vínculos e desgasta relações, favorecendo o surgimento de famílias infelizes, chamar favelas de "filão de romances ainda não lapidados" seria uma forma poética de designá-las. Cada barraco contém a sua
história. E, dentro de cada um deles, há
uma pessoa cuja perspectiva pode servir
de fio condutor para a narrativa.
Por alguma razão obscura, nós, seres
humanos, gostamos de histórias que
acabam bem. Melhor ainda, gostamos de
fazer o bem. Fazer o bem é o corolário da
virtude, a atualização da transcendência,
o dever mesmo do homem que pretende
elevar-se. Até o maior celerado reconhece o valor da filantropia, uma vez que
procura transvestir de benemerência
suas más ações. Não deixa de ser uma
forma irônica de o vício prestar homenagem à virtude.
Nesse contexto, como criticar um programa como o "Domingo da Gente", de
Netinho? O músico-apresentador promove o bem quase que em sua forma
mais pura. Escolhe uma jovem de vida difícil e a torna
princesa por um dia. Sai com ela em grande estilo (limusine incluída) e a enche de presentes. É claro que a beneficência não se esgota num único dia. O apresentador, que
é um poço de simpatia, vai conversando com a princesa e
seus parentes mais chegados e expondo para o público os
principais problemas da família, aos quais tenta dar uma
solução.
Para o cunhado, Netinho consegue, com a ajuda da Força Sindical, um emprego de segurança no shopping center. A mãe recebe, de uma grande central de cursos profissionalizantes, a reciclagem de que precisava para voltar a
trabalhar como auxiliar de enfermagem. Para o pai, é oferecida a versátil máquina de fazer pizza. Agora ele poderá
montar seu próprio negócio.
Os sorrisos que se estampam no rosto da princesa e de
seus familiares à medida em que vão recebendo os prêmios são comoventes. Não acho que seja exagero dizer
que se tornar princesa é um pouco como ganhar na loteria ou ser sorteada para participar do "Show do Milhão".
O programa do Netinho oferece à garota pobre e a toda a
família a chance de se reerguer. A empatia é sincera e inevitável.
Mais ainda, o espectador é mais do que um mero espectador. Ele é parte essencial da "corrente do bem" que se
forma a cada exibição. "Domingo da Gente" não esconde
seu caráter comercial. Os presentes são oferecidos por
empresas que têm seus nomes e produtos claramente divulgados pelo apresentador. Às vezes, é o próprio dono
da companhia quem vai pessoalmente entregar a dádiva
à princesa. O espectador, à medida em que oferece sua
audiência ao programa, justifica o gesto-cálculo do benfeitor-anunciante. A simples dona de
casa, apenas por ligar a TV e sintonizá-la no "Domingo da Gente", passa a
fazer parte do círculo virtuoso que
promove o bem.
Se eu fosse sacana, diria que esse formato de programação beneficente,
que está se espalhando rapidamente
pela TV aberta, é um pouco o lava-rápido das consciências. Mas é impossível deixar de reconhecer que os resultados concretos são bem-vindos, pelo
menos para a família agraciada, a
emissora e a empresa doadora. Não
houvesse essa onda filantrópica, a TV
e o mundo seriam mais ou menos os
mesmos, mas algumas pessoas seriam
menos felizes.
O problema é que essa moda em torno do voluntariado, da filantropia e da
caridade, apesar de resultados positivos palpáveis, tem um componente
ideológico complicado. O discurso pode ser mais ou menos explícito, mas tem inevitavelmente um viés anti-republicano. Funciona um pouco como o "conservadorismo com compaixão" da direita norte-americana, que
pretende, em nome da eficiência, transferir do Estado para igrejas as verbas assistenciais. O próprio Netinho, em
vários momentos, se põe a criticar instituições públicas
ou tenta fazê-las funcionar utilizando o seu prestígio pessoal.
O grave nessa discurseira é que ela sugere que o Estado é
dispensável, um elefante branco gordo e ineficiente. Isso
pode até ser parcialmente verdadeiro do ponto de vista
operacional, mas, em termos teóricos, o Estado, enquanto espaço da ação pública, é fundamental e insubstituível.
E não se pode simplesmente transferir o que é tipicamente público a terceiros, sejam eles empresas, ONGs ou
apresentadores de TV, ainda que bem-intencionados. O
Estado não é um capricho de políticos, mas o resultado da
existência de uma coletividade com demandas públicas
que exigem respostas públicas, impessoais.
Prefiro acreditar que os que sugerem o contrário o fazem apenas por ignorância e audiência.
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