São Paulo, domingo, 01 de julho de 2001

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CRÍTICA

A princesa e a república

HÉLIO SCHWARTSMAN

NO QUE considero uma das mais inspiradas passagens da literatura universal, Tolstoi escreveu: "Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira" ("Ana Karenina", 1, 1). Por trás de cada família infeliz, há uma história, um romance inteiro, houvesse um escritor russo para desenvolvê-lo. "Se queres ser universal, canta a tua aldeia."
Como a pobreza quebra vínculos e desgasta relações, favorecendo o surgimento de famílias infelizes, chamar favelas de "filão de romances ainda não lapidados" seria uma forma poética de designá-las. Cada barraco contém a sua história. E, dentro de cada um deles, há uma pessoa cuja perspectiva pode servir de fio condutor para a narrativa.
Por alguma razão obscura, nós, seres humanos, gostamos de histórias que acabam bem. Melhor ainda, gostamos de fazer o bem. Fazer o bem é o corolário da virtude, a atualização da transcendência, o dever mesmo do homem que pretende elevar-se. Até o maior celerado reconhece o valor da filantropia, uma vez que procura transvestir de benemerência suas más ações. Não deixa de ser uma forma irônica de o vício prestar homenagem à virtude.
Nesse contexto, como criticar um programa como o "Domingo da Gente", de Netinho? O músico-apresentador promove o bem quase que em sua forma mais pura. Escolhe uma jovem de vida difícil e a torna princesa por um dia. Sai com ela em grande estilo (limusine incluída) e a enche de presentes. É claro que a beneficência não se esgota num único dia. O apresentador, que é um poço de simpatia, vai conversando com a princesa e seus parentes mais chegados e expondo para o público os principais problemas da família, aos quais tenta dar uma solução.
Para o cunhado, Netinho consegue, com a ajuda da Força Sindical, um emprego de segurança no shopping center. A mãe recebe, de uma grande central de cursos profissionalizantes, a reciclagem de que precisava para voltar a trabalhar como auxiliar de enfermagem. Para o pai, é oferecida a versátil máquina de fazer pizza. Agora ele poderá montar seu próprio negócio.
Os sorrisos que se estampam no rosto da princesa e de seus familiares à medida em que vão recebendo os prêmios são comoventes. Não acho que seja exagero dizer que se tornar princesa é um pouco como ganhar na loteria ou ser sorteada para participar do "Show do Milhão". O programa do Netinho oferece à garota pobre e a toda a família a chance de se reerguer. A empatia é sincera e inevitável.
Mais ainda, o espectador é mais do que um mero espectador. Ele é parte essencial da "corrente do bem" que se forma a cada exibição. "Domingo da Gente" não esconde seu caráter comercial. Os presentes são oferecidos por empresas que têm seus nomes e produtos claramente divulgados pelo apresentador. Às vezes, é o próprio dono da companhia quem vai pessoalmente entregar a dádiva à princesa. O espectador, à medida em que oferece sua audiência ao programa, justifica o gesto-cálculo do benfeitor-anunciante. A simples dona de casa, apenas por ligar a TV e sintonizá-la no "Domingo da Gente", passa a fazer parte do círculo virtuoso que promove o bem.
Se eu fosse sacana, diria que esse formato de programação beneficente, que está se espalhando rapidamente pela TV aberta, é um pouco o lava-rápido das consciências. Mas é impossível deixar de reconhecer que os resultados concretos são bem-vindos, pelo menos para a família agraciada, a emissora e a empresa doadora. Não houvesse essa onda filantrópica, a TV e o mundo seriam mais ou menos os mesmos, mas algumas pessoas seriam menos felizes.
O problema é que essa moda em torno do voluntariado, da filantropia e da caridade, apesar de resultados positivos palpáveis, tem um componente ideológico complicado. O discurso pode ser mais ou menos explícito, mas tem inevitavelmente um viés anti-republicano. Funciona um pouco como o "conservadorismo com compaixão" da direita norte-americana, que pretende, em nome da eficiência, transferir do Estado para igrejas as verbas assistenciais. O próprio Netinho, em vários momentos, se põe a criticar instituições públicas ou tenta fazê-las funcionar utilizando o seu prestígio pessoal.
O grave nessa discurseira é que ela sugere que o Estado é dispensável, um elefante branco gordo e ineficiente. Isso pode até ser parcialmente verdadeiro do ponto de vista operacional, mas, em termos teóricos, o Estado, enquanto espaço da ação pública, é fundamental e insubstituível.
E não se pode simplesmente transferir o que é tipicamente público a terceiros, sejam eles empresas, ONGs ou apresentadores de TV, ainda que bem-intencionados. O Estado não é um capricho de políticos, mas o resultado da existência de uma coletividade com demandas públicas que exigem respostas públicas, impessoais.
Prefiro acreditar que os que sugerem o contrário o fazem apenas por ignorância e audiência.


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