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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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CRÍTICA

Ficção ameaçada

JOSÉ GERALDO COUTO

QUEM AINDA tem esperança de que "Big Brother" e congêneres sejam apenas uma onda passageira, pode ir tirando o cavalinho da chuva. Pelo menos na TV norte-americana, que em muitos aspectos serve de bússola para a nossa, os "reality shows" não apenas vieram para ficar como estão ocasionando mudanças radicais na estrutura da indústria televisiva.
De acordo com uma contundente reportagem publicada na semana passada no "The New York Times", as quatro grandes redes norte-americanas (ABC, CBS, NBC e Fox) chegaram à conclusão de que é muito mais lucrativo apostar em programas como "American Idol", "Joe Millionaire" e "The Bachelorette" do que nos chamados "scripted shows", que poderíamos traduzir como ficção televisiva ou teledramaturgia (novelas, sitcoms, seriados, telefilmes).
É fácil compreender a equação. Os custos de um seriado ficcional são incomparavelmente mais altos que os de um "reality show". Além disso, sua produção é mais complicada e o retorno ao investimento é mais demorado (muitos só se pagam com as reprises e com as vendas ao exterior).
Com isso, a TV americana, filha bastarda do cinema, está deixando de assentar prioritariamente seu entretenimento na teledramaturgia. Roteiristas e atores já temem perder seus empregos, enquanto vêem as grandes redes inventarem ou comprarem novos "reality shows".
A NBC, por exemplo, prepara "Around the World in 80 Dates" ("Volta ao Mundo em 80 Namoros"), em que um rapaz procura parceiras em outros países. A ABC, por sua vez, vai produzir a versão americana do sucesso britânico "Wife Swap" ("Troca de Esposas"), no qual duas famílias trocam suas mães por duas semanas.
No Brasil, a tendência ainda é incipiente, e é muito cedo para saber se ganhará a mesma dimensão dramática.
De todo modo, nossa televisão, embora influenciada pela norte-americana (e importadora de uma boa parte de seus produtos), é muito diferente dela. Para começar, a TV brasileira não nasceu do cinema, mas sim do rádio. Não por acaso, seu produto de maior êxito, a telenovela, é um derivado da velha radionovela.
Além disso, aqui há um virtual monopólio da audiência da TV aberta, enquanto nos EUA o público se divide mais democraticamente entre as várias redes, sem contar que lá o peso relativo das TVs por assinatura é muito maior.
Por fim, a teledramaturgia brasileira alcançou um tal grau de sintonia com o imaginário popular que é impossível conceber nossa televisão sem ela, ou com ela relegada a segundo plano. Um dos efeitos indesejáveis dessa mudança seria nossa transformação de exportadores de novelas em meros importadores de fórmulas como "No Limite" e "Big Brother".
É provável que aqui o efeito dos "reality shows" seja menos bombástico sobre a indústria da TV. Possivelmente afetará, digamos, a periferia do sistema. Por exemplo, as emissoras que concorrem com a Globo terão ainda menos ânimo para investir em produção própria de ficção. É mais fácil e barato explorar as mil possibilidades "mundocaninas" da chamada realidade. A própria Globo talvez diminua os investimentos na ficção, cortando projetos de minisséries e congêneres, em favor dos "reality shows".
Seja como for, escritores, dramaturgos e atores que batalharam anos a fio para conseguir um lugar ao sol no panteão televisivo devem estar se sentindo lesados pela concorrência desleal dos anônimos que se tornam celebridades da noite para o dia só porque várias câmeras acompanham todos os passos de seu insosso dia-a-dia. Pois, como diz Millôr Fernandes, hoje, para ser alguém, não é preciso ser ninguém.


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