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CRÍTICA
O homem que nunca ri
ARMANDO ANTENORE
HÁ QUASE dez anos é assim: se precisa de algo,
um livro ou CD que pretenda mostrar às câmeras, uma bebida que possa acalmar os entrevistados, Jô Soares vira-se invariavelmente para a
esquerda e chama Alex. O garçom, um tanto hesitante,
entra em cena, faz o que tem de fazer e sai, o rosto inerte, o
olhar baixo, a palavra árida de quem pouco fala. Lembra o
norte-americano Buster Keaton, sublime cômico do cinema mudo, que se celebrizou por nunca rir. Gaiatos espatifavam-se em chãos traiçoeiros, pianos desabavam de improváveis janelas, tortas deslizavam pelos ares, e músculo nenhum alterava o
semblante de Keaton.
Escasso nas palavras, Alex também
economiza feições. Jamais gargalha, raramente sorri. Frequenta um universo
em que tudo exige a risada. No "Programa do Jô", platéia e músicos sabem que
alegria é moeda -o torrão de açúcar que
adula o apresentador, o combustível que
impede o espetáculo de desandar. Mesmo assim, Alex não ri.
Como o garçom nasceu no Chile, Jô inventou de abordá-lo sempre em portunhol. Quando necessita do ajudante,
põe-se a tagarelar com impaciência, mimetizando o acento castelhano: "Anda,
que estás esperando para trazer a bolsa
de la señorita?". Toma Alex por preguiçoso, relapso, o sujeito que dificilmente
se encontra onde deveria. Jô é, ali, o patrão intolerante, despótico, que ridiculariza o serviçal acanhado. É o artista bem-sucedido, poliglota, superior, que se irrita com a precariedade do cidadão comum. É o colonizador europeu, educado na Suíça,
que deseja civilizar os bugres, enquadrar os cucarachas.
Humilha-se, sim, o Alex, mas a humilhação tem o álibi
da comédia. O garçom funciona como "escada" do apresentador. Incorpora o personagem secundário que, na lógica humorística, abre a brecha para o protagonista brilhar e "se elevar". Jô tripudia sobre Alex porque uma das
sinas dos "escadas" é se dar mal. Basta recordar o caso
dos Trapalhões. Didi apronta, e Dedé sempre leva a pior.
Ocorre que, no "Programa do Jô", realidade e faz-de-conta se misturam. O comediante -rico, culto, famoso- é mesmo o patrão de Alex. E Alex é mesmo um garçom, profissão que exerce desde 1985 (já passou por restaurantes de luxo e hotéis cinco estrelas da capital paulista). Observo-os no palco da Globo e me pergunto se o rapaz não fica chateado com as brincadeiras. Noites e noites
escutando o Jô a lhe zombar do sotaque, a mandar que se
apresse, a acusá-lo de inapto. Não haverá momentos em
que o garçom confunde as coisas: esquece o "escada" e se
descobre na pele do subalterno maltratado? Será por isso
que Alex nunca ri?
Resolvo procurá-lo. Encontro um homem de fato tímido, que se veste com sobriedade. Poucas vezes usa jeans.
Prefere camisas sociais às esportivas. Prioriza cores discretas: marrom, bege, azul-escuro. Em hipótese alguma,
calça tênis. Chama-se Luis Alexander Rubio Bernales,
tem 37 anos e deixou Santiago aos 22. Trocou a cidade natal por São Paulo na esperança de conseguir ocupações
mais rentáveis. Filho de uma empregada doméstica e um
caixeiro viajante, já lavou copos para sobreviver. Também trabalhou como carregador de caminhão e vendedor de verduras. Espanta-se quando
conto que ele nunca ri. "Nunca?"
Explica, então, que um episódio trágico o levou à TV. Em 1991, seu primo
e melhor amigo, Felipe, era o garçom
do "Jô Soares Onze e Meia", ainda no
SBT. Um dia, saindo de casa, assaltantes o esfaquearam. Quatro estocadas.
Felipe não resistiu, e a produção do
"talk show" convidou Alex para
preencher a vaga do parente morto.
"Comecei na televisão por causa de
uma perda irreparável. Uma fatalidade. É natural que não ache tanta graça
nesse ambiente."
Afirma que virou "escada" do humorista sem querer. "Em cena, Jô me
encara como um personagem. Eu
próprio não me enxergo assim. No vídeo ou longe das câmeras, me comporto igualzinho. Não separo a vida de
lá e a vida de cá."
Poderia, portanto, se incomodar com as troças do apresentador, mas diz não ligar. "Jô realmente está acima de
mim. Não me sinto à altura dele -um cara que domina
línguas, estudou fora, escreve peças, toca, interpreta.
Quem sou eu? Não sou artista, sou apenas um garçom.
Vim ao mundo para servir, para não atrapalhar. Brincando, Jô me trata do mesmo modo que a sociedade trata todos os que dependem do trabalho braçal, não da fama. Já
me habituei." Habituou-se menos por conformismo e
mais porque vê nobreza em servir. "No programa e na vida real, represento o respeito. Não é um papel fácil."
Tampouco é tarefa lucrativa. A imagem dos que riem na
TV costuma valer ouro. Jô, por exemplo, abre o apartamento para "Caras" e chega de Mercedes ou Jaguar às
gravações do "talk show". Alex, que nunca ri, só anda de
ônibus e ainda não tem casa própria.
A partir de hoje, substituo temporariamente o titular desta coluna, Alcino Leite Neto, que se licenciou para um período de estudos. Críticas e sugestões dos leitores serão muito bem-vindas.
A partir de hoje, substituo temporariamente o titular desta coluna, Alcino Leite Neto, que se licenciou para um período de estudos. Críticas e sugestões do leitor serão muito bem-vindas.
E-mail: aluis@folhasp.com.br
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