São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


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CRÍTICA

Besteirol em dois tempos

Fernando de Barros e Silva

MUSA DA FUNÇÃO FÁTICA
O novo "Programa Livre" de Babi é um jardim zoológico: convidados bizarros, tolices, vulgaridade e nada a declarar


DERCY Gonçalves; um administrador de cemitério; Enéas, o do Prona; o ginecologista Malcolm Montgomery; Maguila, o próprio. Esses foram alguns dos convidados do novo "Programa Livre" em seus primeiros dias, nas últimas segunda e terça-feira, apresentado por Babi, no SBT. A julgar por essa galeria edificante de nomes destacados para os programas de estréia, já se pode ter uma idéia do que aconteceu com o programa que era apresentado por Serginho Groisman. Mais um retrocesso na TV brasileira.
Silvio Santos sempre atuou à frente da emissora como um camelô. Seu negócio é vender porcarias ao povão, só. Não tem compromisso com mais nada. Houve uma época em que o SBT correu atrás de um pouco de reconhecimento. Boris Casoy e Jô Soares nunca tiveram audiência significativa, mas davam um certo verniz de credibilidade à emissora, serviam como contraponto aos abusos popularescos da programação. Hoje o SBT só se interessa pela escala -é o frango de FHC.
Lembre-se que Marília Gabriela já foi considerada uma jornalista de prestígio antes de se amoldar ao homem do baú. Vê-se que Babi segue a mesma trajetória. A bonequinha da estação do circuito descolado da TV está agora a serviço de mais um programa baixo de auditório. Babi é candidata a musa da função fática na TV (aquela função da linguagem em que não há propriamente transmissão de conteúdos e cujo objetivo é prolongar a comunicação ou interrompê-la, atrair a atenção do destinatário ou verificar sua atenção). Parecia no início representar alguma coisa menos boçalizante do que a média das mulheres que enfeitam a tela, mas foi enquadrada ao triste destino que a TV reserva às moças com quem a natureza foi generosa.
O novo "Programa Livre" fez uma opção pelo bizarro. É inútil e constrangedor. Dercy Gonçalves, por exemplo, também contratada do SBT, é uma mistura de moralismo tacanho e vulgaridade de almanaque, reacionarismo e escracho, fórmula a que Hebe Camargo também deve boa parte de seu êxito. Não falarei sobre Enéas, Maguila e que tais. O Brasil é mesmo uma tristeza.

"Malhação", a novela, série, enrolação, seja lá o que for, entrou no ano 2000, no último dia 3, com um episódio bem curioso. O programa desde o ano passado deixou de ser ambientado numa academia de ginástica, substituída pela escola "Múltipla Escolha", onde se desenrolam agora os dramas adolescentes. Parece haver aí algum esforço da Globo para desimbecilizar um pouco o enredo, embora essa preocupação pedagógica tardia seja sempre suspeita.
Pois bem, no dia 3 a escola recebeu o antropólogo Rubem César Fernandes, estudioso da religião no Brasil. Membro de uma ONG, o intelectual deu uma palestra aos alunos sobre noções de cidadania. A lição básica se resumia ao seguinte: não se deve esperar mais que o Estado resolva os problemas sociais sozinho; as pessoas devem se organizar para, a partir de suas relações mais próximas, cuidar do espaço comum. Se cada um fizer isso, dizia o antropólogo à classe atenta, teremos um país melhor. Já ouvimos isso.
É a idéia tucana das parcerias, das iniciativas comunitárias, da transferência das políticas públicas, ou de parte delas, para as mãos da sociedade que estava sendo defendida pela Globo. O exemplo usado pelo antropólogo também não era novo: há muitos parques pelas cidades; o Estado não pode cuidar de todos; se cada um regar e podar as suas plantinhas, todos saem ganhando. Cidadania é isso.
O que pensar dessa novíssima lição de moral e cívica? Ela lembra muito o "Cândido", de Voltaire, cujo subtítulo -ironia pura- é "Sobre o Otimismo". Cândido, o personagem, depois de viajar o mundo e acumular tragédias, fracassos e desencontros, conclui com a seguinte frase a sua epopéia: "É preciso cultivar o nosso jardim".
Nada contra essa jardinagem cívica; ela de fato é um avanço se confrontada ao culto do narcisismo desmiolado que o programa fazia. Ocorre que é preciso dimensionar o alcance da iniciativa: ela funciona como ideologia compensatória para a classe média no momento em que o Estado, falido e transformado em pouco mais que gestor de negócios privados, precisa justificar porque abandonou de vez os pobres à própria sorte. Defender o cultivo do nosso jardim quando o resultado da modernização do país são milhões de miseráveis e desempregados tem algo de escárnio. O Brasil continua sendo uma tristeza.

Um registro simpático. A Globo estreou bem o ano, exibindo "Central do Brasil" e a minissérie "A Muralha". Marcou também um ponto ao exibir no "Fantástico" a entrevista com João Baptista Figueiredo, aquele monstro. Que coisa triste, o Brasil.


Entro em férias, mas retomo a coluna dia 13 de fevereiro. Até lá.



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