São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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CRÍTICA
Ninguém escreve ao coronel

ARMANDO ANTENORE

O GENIAL Chico Anysio, 69, é hoje um coronel que reluta em não morrer. Enquanto agoniza, a platéia -a imensa platéia que o acompanhou por décadas- não sabe se deve continuar a aplaudi-lo. Trata apenas de observá-lo, ora desconcertada, ora piedosa, mas sempre triste. Muito triste.
O humorista já não é, definitivamente, um coronel Limoeiro, o personagem gracioso que incorporou nos anos 60. Está mais para o senhor de engenho que, nostálgico do poder, cultiva rompantes tão despóticos quanto inócuos. O latifúndio deixou de verdejar, a terra produziu em excesso e esgotou, o mato engole as soleiras do casarão vazio, e na sala empoeirada o velho cacique resiste, amargo, brandindo a cartucheira. Chico lembra o ACM dos últimos dias, que tenta tudo para impedir o avanço do inimigo (Jader Barbalho? O sopro reformista? O tempo?).
Foi sob a persona do coronel rancoroso -e demagogo- que o comediante concedeu entrevista à "IstoÉ" da semana passada. Abriram-lhe os microfones, e Chico atacou. Classificou como equivocadas três recentes contratações da Globo: Serginho Groisman, Luciano Huck e Ana Maria Braga. Em seguida, tripudiou sobre Marluce Dias da Silva (diretora-geral da emissora), o patrão e até o presidente da República: "Não me interessa a opinião dela, do Roberto Marinho ou do Fernando Henrique. A opinião do povo é o que me interessa. Trabalho para as classes C, D e E".
A resposta veio logo. Na manhã de terça-feira, a cúpula da rede anunciou que resolvera suspender Chico por período indeterminado. Também comunicou que estuda "outras medidas" contra o humorista, ainda indefinidas na noite de quarta, quando concluí a coluna.
Pode-se concordar ou não com as declarações à revista ou com a represália da Globo. O que não se pode, porém, é tomar a investida de Chico por um gesto de coragem, resquício da época em que o ator enfrentava a censura dos militares. Desta vez, a "subversão" carece de ideais transformadores ou genuinamente críticos. Difícil acreditar que o cômico esteja, de fato, preocupado com os rumos da TV brasileira, com a indigência gradativa da programação, com o controle interno dos Marinho ou com a ditadura do departamento comercial sobre "a parte artística", como costuma dizer. Na realidade, Chico não pretende modificar nada. Grita apenas porque deseja de volta o espaço e a influência que possuía. À frente de uma rebelião conservadora, comanda o exército narcisista de um homem só: ele próprio.
A estratégia não é inédita. Em 89, o "TV Pirata" despontava como alternativa irreverente à fórmula desgastada do humorismo que se praticava na Globo. Chico sentiu o baque e ameaçou se transferir para o SBT. Pela imprensa, atirou farpas semelhantes às que lança agora. Denunciou a "incompetência administrativa" dos diretores globais (chegou a chamar Daniel Filho de Daniel Falho) e lamentou "o processo de juvenilização" da emissora-líder. Somente arrefeceu o furor verbal quando assinou uma vantajosa renovação de contrato.
Dois anos depois, o "TV Pirata" estava fora do ar, e Chico reinava absoluto. Estrelava um programa diário e outro semanal, supervisionava Xuxa e Trapalhões. Numa entrevista para o "Jornal do Brasil", declarou, alternando soberba e sarcasmo: "Sou o grande ditador".
Um ditador sempre empenhado em ritos de permanência, nunca em ritos de passagem, como certa vez definiu o crítico Nelson Pujol Yamamoto. Ou melhor: Chico peleja não só para se manter no vídeo, mas também para perpetuar um tipo de humor que remonta à era do rádio.
Bom coronel, o comediante protege e emprega todos os que o reverenciam e lhe pedem a bênção. Ficou conhecido por contratar artistas da antiga -nomes outrora cintilantes que, ofuscados pelo tempo, resignaram-se em papéis secundários. A lista é infindável: Grande Otelo, Brandão Filho, Ivon Cury, Costinha, Walter D'Ávila, Berta Loran. Um batalhão que jamais se negou a rir das piadas do chefe.
Se o protegido, no entanto, abandona a escolinha do generoso professor e decide alçar vôos próprios, o lado tirânico do coronel entra em cena e maneja o chicote sem dó. Recorde-se o caso de Tom Cavalcante.
A impiedade se revela maior com os novatos que nem sequer passaram pela tal escolinha -sobretudo aqueles que, leitores de outras cartilhas, insistem em praticar o chamado "humor inteligente". A expressão colou-se à imagem de Chico durante os anos 60, 70 e boa parte dos 80. Mudou de dono justamente com o advento dos piratas e dos cassetas.
As batalhas da hora, entretanto, acabam por encobrir uma verdade tão cristalina como as cartadas cruéis do comediante: Chico é um criador magistral. Perdeu o viço, claro, porque a lógica do showbiz e o correr do relógio se mostram ainda mais insensíveis que o coronel. Ocorre que, nas temporadas de bonança (longuíssimas), nenhum humorista do país alcançou tamanha excelência.
Daí a tristeza: vê-lo afogar-se no ego, vê-lo chafurdar em arengas prosaicas. Após cinco décadas de carreira, o artista deveria aceitar a morte do coronel. Matá-lo mesmo. Dar o tiro de misericórdia no moribundo. O Chico Anysio que restará talvez já não se adapte à Globo ou à TV do século 21, mas nunca deixará a lembrança dos que o viram brilhar.

E-mail: aluis@folhasp.com.br



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