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CRÍTICA
Ninguém escreve ao coronel
ARMANDO ANTENORE
O GENIAL Chico Anysio, 69, é hoje um coronel
que reluta em não morrer. Enquanto agoniza, a
platéia -a imensa platéia que o acompanhou
por décadas- não sabe se deve continuar a
aplaudi-lo. Trata apenas de observá-lo, ora desconcertada, ora piedosa, mas sempre triste. Muito triste.
O humorista já não é, definitivamente, um coronel Limoeiro, o personagem gracioso que incorporou nos anos
60. Está mais para o senhor de engenho que, nostálgico
do poder, cultiva rompantes tão despóticos quanto inócuos. O latifúndio deixou de verdejar, a
terra produziu em excesso e esgotou, o
mato engole as soleiras do casarão vazio,
e na sala empoeirada o velho cacique resiste, amargo, brandindo a cartucheira.
Chico lembra o ACM dos últimos dias,
que tenta tudo para impedir o avanço do
inimigo (Jader Barbalho? O sopro reformista? O tempo?).
Foi sob a persona do coronel rancoroso -e demagogo- que o comediante
concedeu entrevista à "IstoÉ" da semana
passada. Abriram-lhe os microfones, e
Chico atacou. Classificou como equivocadas três recentes contratações da Globo: Serginho Groisman, Luciano Huck e
Ana Maria Braga. Em seguida, tripudiou
sobre Marluce Dias da Silva (diretora-geral da emissora), o patrão e até o presidente da República: "Não me interessa a
opinião dela, do Roberto Marinho ou do
Fernando Henrique. A opinião do povo
é o que me interessa. Trabalho para as classes C, D e E".
A resposta veio logo. Na manhã de terça-feira, a cúpula
da rede anunciou que resolvera suspender Chico por período indeterminado. Também comunicou que estuda
"outras medidas" contra o humorista, ainda indefinidas
na noite de quarta, quando concluí a coluna.
Pode-se concordar ou não com as declarações à revista
ou com a represália da Globo. O que não se pode, porém,
é tomar a investida de Chico por um gesto de coragem,
resquício da época em que o ator enfrentava a censura
dos militares. Desta vez, a "subversão" carece de ideais
transformadores ou genuinamente críticos. Difícil acreditar que o cômico esteja, de fato, preocupado com os rumos da TV brasileira, com a indigência gradativa da programação, com o controle interno dos Marinho ou com a
ditadura do departamento comercial sobre "a parte artística", como costuma dizer. Na realidade, Chico não pretende modificar nada. Grita apenas porque deseja de volta o espaço e a influência que possuía. À frente de uma rebelião conservadora, comanda o exército narcisista de
um homem só: ele próprio.
A estratégia não é inédita. Em 89, o "TV Pirata" despontava como alternativa irreverente à fórmula desgastada
do humorismo que se praticava na Globo. Chico sentiu o
baque e ameaçou se transferir para o SBT. Pela imprensa,
atirou farpas semelhantes às que lança agora. Denunciou
a "incompetência administrativa" dos diretores globais
(chegou a chamar Daniel Filho de Daniel Falho) e lamentou "o processo de juvenilização" da emissora-líder. Somente arrefeceu o furor verbal quando assinou uma vantajosa renovação de contrato.
Dois anos depois, o "TV Pirata" estava fora do ar, e Chico reinava absoluto. Estrelava um programa diário e outro semanal, supervisionava Xuxa e Trapalhões. Numa
entrevista para o "Jornal do Brasil", declarou, alternando
soberba e sarcasmo: "Sou o grande ditador".
Um ditador sempre empenhado em
ritos de permanência, nunca em ritos
de passagem, como certa vez definiu o
crítico Nelson Pujol Yamamoto. Ou
melhor: Chico peleja não só para se
manter no vídeo, mas também para
perpetuar um tipo de humor que remonta à era do rádio.
Bom coronel, o comediante protege
e emprega todos os que o reverenciam
e lhe pedem a bênção. Ficou conhecido por contratar artistas da antiga
-nomes outrora cintilantes que,
ofuscados pelo tempo, resignaram-se
em papéis secundários. A lista é infindável: Grande Otelo, Brandão Filho,
Ivon Cury, Costinha, Walter D'Ávila,
Berta Loran. Um batalhão que jamais
se negou a rir das piadas do chefe.
Se o protegido, no entanto, abandona a escolinha do generoso professor e
decide alçar vôos próprios, o lado tirânico do coronel entra em cena e maneja o chicote sem dó.
Recorde-se o caso de Tom Cavalcante.
A impiedade se revela maior com os novatos que nem
sequer passaram pela tal escolinha -sobretudo aqueles
que, leitores de outras cartilhas, insistem em praticar o
chamado "humor inteligente". A expressão colou-se à
imagem de Chico durante os anos 60, 70 e boa parte dos
80. Mudou de dono justamente com o advento dos piratas e dos cassetas.
As batalhas da hora, entretanto, acabam por encobrir
uma verdade tão cristalina como as cartadas cruéis do comediante: Chico é um criador magistral. Perdeu o viço,
claro, porque a lógica do showbiz e o correr do relógio se
mostram ainda mais insensíveis que o coronel. Ocorre
que, nas temporadas de bonança (longuíssimas), nenhum humorista do país alcançou tamanha excelência.
Daí a tristeza: vê-lo afogar-se no ego, vê-lo chafurdar em
arengas prosaicas. Após cinco décadas de carreira, o artista deveria aceitar a morte do coronel. Matá-lo mesmo.
Dar o tiro de misericórdia no moribundo. O Chico Anysio que restará talvez já não se adapte à Globo ou à TV do
século 21, mas nunca deixará a lembrança dos que o viram brilhar.
E-mail: aluis@folhasp.com.br
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