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CRÍTICA
O espelho
MARCELO MIGLIACCIO
FALAR MAL da TV virou moda. É "in" repudiar a baixaria, desancar o onipresente eletrodoméstico. E,
num país em que os domicílios sem televisão são cada vez mais raros, o que não falta é especialista no assunto. Se um dia fomos uma pátria de 100 milhões de técnicos
de futebol, hoje, mais do que nunca, temos um considerável
rebanho de briosos críticos televisivos.
Depois de azular as janelas das grandes e das pequenas cidades, os televisores ganharam as ruas. Hoje não se encontra um
boteco, padaria ou consultório
dentário que não tenha um. Há
até taxistas que trabalham com
um olho no trânsito e outro na
novela. E, nas esquinas escuras
onde se come o suspeitíssimo cachorro-quente, pode-se assistir
ao "Jornal Nacional" e ser assaltado em tempo real.
Mas, quando os "especialistas"
criticam a TV, estão olhando para o próprio umbigo. Feita à nossa imagem e semelhança, ela é resultado do que somos enquanto
rebanho globalizado. Macaqueia
e realimenta nossos conceitos e
preconceitos quando ensina, diariamente, o bê-á-bá a milhões de crianças.
Reclamamos que, na programação, só vemos sexo, violência e consumismo. Ora, isso é o que vemos também ao sair à
rua. E, se fitarmos o espelho do banheiro com um pouco mais
de atenção, levaremos um susto com a reprise em cartaz. Talvez por isso a TV nos choque, por nos mostrar, sem rodeios, a
quantas anda o inconsciente coletivo. E não adianta dourar a
pílula; já tentaram, mas não deu ibope.
Aqui e ali, alguns vão argumentar que cultivam pensamentos mais nobres e que não se sentem representados no vídeo.
Mas a fração que lhes cabe está lá, escondidinha como é próprio às minorias. Está nos bons documentários, nas belas
imagens dos eventos esportivos, na dramaturgia sensível, no
humorismo que surpreende, nos desenhos e nas séries inteligentes, no entrevistador que sabe ouvir o entrevistado, nas
campanhas altruístas.
Reclama-se muito que, nas novelas, os negros fazem, quase
sempre, papéis de subalternos. Mas é essa condição que a sociedade reserva à maioria deles, e também à maior parte dos
nordestinos, na vida real. O que a televisão fornece é um retrato da desigualdade no país.
E, quando explora a mulher, estigmatiza gays, restringe o
mercado para o ator idoso ou vende cerveja, maledicência e
atrocidade na programação vespertina, ela reflete o mundo
dominado pelo macho-adulto-branco-capitalizado.
A televisão mostra muita violência o dia inteiro, gritam os pacifistas na sala de estar. Como se
não houvesse milhões de Stallones, Gibsons, Bronsons, Van
Dammes e Schwarzeneggers armados até os dentes no Afeganistão, Golfo Pérsico, Colômbia,
Mianmar, favelas brasileiras ou
trincheiras angolanas.
É natural que uma parte de nós
se revolte, o que parece tão compreensível quanto inócuo. Campanhas contra a baixaria televisiva lembram a piada do marido
traído que encontra a mulher com o amante no sofá da sala e,
no dia seguinte, vende o móvel para solucionar o problema.
Garrotear a TV é tapar o sol com a peneira.
Enquanto a discussão ganha adeptos, continuamos devorando nosso tubo de imagem de estimação. Depois, de barriga cheia, saímos à rua para ratificar, legitimar com pensamentos, palavras e atitudes, que as coisas são mesmo assim e que,
pelo jeito, a reprise continuará.
Aquele repórter sensacionalista que repete à exaustão a cena de linchamento, o apresentador que tripudia sobre o drama do desvalido, a loura que vê na criança um consumidor a
mais, o jovem que tem num "reality show" desumano a alternativa para sua falta de horizonte, a menina precocemente
erotizada, no fundo, somos todos nós.
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