São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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CRÍTICA

O horário eleitoral como entretenimento

EUGÊNIO BUCCI

ABERTA a temporada do horário eleitoral gratuito, uma queda-de-braço rouba a cena. De um lado, José Serra transpira para ingressar no segundo turno. De outro, Ciro Gomes administra sua vantagem. Os outros dois candidatos passam ilesos. Lula parece não ser o alvo preferencial de nenhum ataque, ao menos por ora (foi até citado no primeiro programa de Serra como um dos que combateram o autoritarismo no Brasil). Quanto a Garotinho, não há sinais de que seus oponentes o considerem uma ameaça. Garotinho aparece como um "café-com-leite" na disputa dos "grandes".
A briga que se anuncia é mesmo entre José Serra e Ciro Gomes. Vem aí, senhoras e senhores, um "reality show" angustiante. Até para quem não vota em nenhum dos dois, até mesmo para quem não suporta horário político, vai ser um festim mais brutal que "Big Brother". Para um ou para outro, o "paredão" de ser excluído do segundo turno será devastador. Serra de fora significará um fiasco vexatório para o governo. Ciro de fora será um desmoronamento trágico. Imperdível. Qualquer que seja o resultado da briga, o sadismo da platéia será saciado com baldes de sangue cívico.
As clássicas perguntas que sempre se repetem nesses momentos eleitorais -"Qual o real poder de influência da propaganda sobre a decisão do eleitor?", "Os marqueteiros fazem mesmo diferença?"- tornam-se perguntas tingidas de desespero. Melhor para a massa, que quer mesmo é ver o esquartejamento dos homens públicos em horário nobre.
A televisão pode inverter as posições que hoje parecem consolidadas? Que ninguém duvide. Pode sim. Não porque manipule as consciências desprotegidas dos ignorantes, mas simplesmente porque, para a maior parte dos brasileiros, é a fonte prioritária (quando não a única) de informação. Mais que isso, a TV é a arena em que são debatidos e equacionados os dilemas que tensionam a opinião pública nacional. A sua linguagem, por isso mesmo, é a linguagem preferencial dos políticos. Para o bem e para o mal, o signo que cada um deles busca representar para os eleitores é um signo televisivo. Todos são obrigados a se apresentar como personagens televisivos, pois é com personagens televisivos que o público aprendeu a dialogar. Se as posições ainda podem ser invertidas, é só na TV e pela TV que elas poderão ser invertidas.
Lembremos que a campanha de 2002 já começou, em janeiro, com o apogeu de uma imagem televisiva muito bem construída: Roseana Sarney. Não por acaso, essa mesma imagem desmilinguiu-se mais tarde a golpes de uma outra imagem, essa maligna: uma pilha de dinheiro em cima de uma escrivaninha. É assim que a política dos nossos dias acontece, pelo enfrentamento de signos televisivos. São signos ambíguos, escorregadios, que fundem, em si mesmos, argumentos racionais e apelos sedutores, que misturam o discurso informativo e a narrativa ficcional, que revestem a cena pública com detalhes da vida íntima. São signos, enfim, próprios do espetáculo. É uma era da política despolitizada, como se diz. E não poderia ser diferente.
Agora será assim: campanha eleitoral com gosto de "reality show". Qual dos dois sobreviverá? Ciro tem só quatro minutos de programa. Sua produção é pobre, sem nada de surpreendente. Mas o personagem que ele encarna, baseado no vigor e na raça, combina com a falta de recursos. E conta com o auxílio luxuoso de Patrícia Pillar, puro carisma televisivo. Serra representa outro personagem, o da eficiência racional. Ele é a máquina. Tem dez minutos do show só para si. Tem o presidente da República como cabo eleitoral. A julgar pela estréia, imprimirá à sua propaganda o tom de programa jornalístico (notavelmente bem-feito, aliás, com Valéria Monteiro e, vá lá, Gugu também). É uma tática sob medida para quem, como ele, busca na alegação da verdade o seu dom de iludir.
Será um duelo e tanto.



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