São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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CRÍTICA

Perigosa falsidade

HÉLIO SCHWARTSMAN

É com dor no coração que vou falar mal de meu canal de TV favorito. O Discovery Channel está entre as melhores coisas da TV disponível no Brasil. Seus programas são, de um modo geral, informativos, educativos, interessantes e plasticamente agradáveis. É o que se espera de uma TV de qualidade.
Na comparação com as bobagens exibidas em outros canais, especialmente da TV aberta, o Discovery se torna um oásis no deserto, um sol no Oriente, o grande "default" do controle remoto.
É claro que eu exagero um bocadinho. O Discovery também é capaz de transmitir informação de valor duvidoso. Foi num documentário sobre o Antigo Egito, por exemplo, que eu aprendi que fezes de crocodilo do Nilo são um excelente contraceptivo. Duvido um pouco. Embora as fezes crocodilianas sejam ricas em ácido lático, que pode funcionar como espermicida, é pouco provável que o método oferecesse um mínimo de segurança.
Mesmo duvidando da informação, podemos nos maravilhar com a capacidade investigativa do ser humano. O que será que passou na cabeça do egípcio que primeiro teve a idéia de catar fezes de crocodilo e passá-las ali onde podem exercer sua função espermicida?
O problema do Discovery é que de sua programação emerge uma mensagem, jamais explicitamente enunciada, que diz mais ou menos: a ciência vai resolver todos os problemas da humanidade. Nada mais falso.
É claro que 90% do que passa na TV traz uma mensagem falsa e isso normalmente não constitui dificuldade. No caso do Discovery, porém, a falsidade é perigosa porque ela não se coloca como algo ficcional, mas sim como meta realizável, talvez inexorável.
A abordagem da maioria dos programas é tão acrítica no que tange aos fundamentos da ciência que fica a sensação de que ela é algo neutro, natural, que está no mundo -se é que não o engendrou- para promover a felicidade humana.
No Discovery, a ciência salva vidas, dá-lhes qualidade, explica praticamente tudo o que queremos saber e ainda ajuda a combater o crime, até assassinatos ocorridos séculos atrás, que puderam ser desvendados graças aos avanços da medicina forense. É como se a ciência ocupasse um lugar entre o do super-homem e o de Deus.
Não pretendo aqui, é óbvio, demonstrar que a ciência é algo intrinsecamente mau. Ao contrário, reconheço a utilidade do forno de microondas. O saber técnico melhorou e prolongou a vida do homem. Isso é indiscutível. Na pior das hipóteses, a humanidade já conta com métodos contraceptivos mais práticos do que as fezes de crocodilo do Nilo.
Subjaz ao Discovery um positivismo do tipo mais tacanho. E o risco de tomar a ciência tão acriticamente e atribuir-lhe um valor tão elevado é que deixamos de considerar outras formas de pensamento, não-científicas, mas nem por isso menos válidas.
O filósofo alemão Martin Heidegger elaborou uma feroz crítica à ciência. Para Heidegger, o pensamento científico é um pensamento calculista ("rechnendes Denken") que procura organizar o mundo em instantâneos, compartimentalizando-o para dele tirar proveito. Segundo Heidegger, "a ciência não pensa". No máximo, ela conta, calcula.
O filósofo contrapõe ao pensamento científico um outro tipo de pensamento, que chama de contemplativo ("besinnliches Denken"). Ele está na base da filosofia, que permite apreender o mundo em seus significados "autênticos".
Obviamente, perpetrei uma simplificação criminosa de Heidegger, mas a idéia que pretendia fixar é apenas a de que o pensamento científico não é a única forma rigorosa de pensar.
Na verdade, os três princípios que, "grosso modo", fundamentam o edifício lógico científico são infantis. O princípio de identidade afirma que "O que é, é; o que não é, não é". O princípio de não-contradição assevera que "O que é não é o que não é". O princípio do terceiro excluído nos garante que uma proposição ou é afirmativa ou é negativa, não havendo meio-termo.
Convenhamos que não são idéias particularmente brilhantes. Se limitássemos todas as nossas reflexões a essas diretrizes, certamente nos veríamos em apuros. É claro que a ciência é algo mais complexa e não opera apenas com esses três princípios.
Mas a questão dos fundamentos conceituais é apenas um dos problemas da ciência. Na medida em que ela é feita por homens, está sujeita aos mesmos vícios de que padece a humanidade. Afirmar ou mesmo sugerir que a ciência seja neutra, por exemplo, é piada.
O caso da Estação Espacial Internacional (EEI) é emblemático. Para o Discovery, ela é a "mais ambiciosa obra de engenharia" já concebida. Os experimentos realizados em microgravidade poderão revolucionar a indústria de medicamentos. Pode ser. Até a conquista da Lua, outro elefante branco, gerou subprodutos úteis. Mas uma outra leitura possível da EEI assegura que ela é a maior, mais cara e mais brilhante inutilidade já concebida pelo homem. Seu real propósito seria o de manter ocupados em projetos inofensivos os cientistas do programa espacial soviético, que, desempregados, poderiam ajudar Saddam Hussein a ampliar o alcance de seus mísseis.
Na verdade ambas as leituras, a do Discovery e a mais cética, coexistem. Isso já mostra que não podemos nos sujeitar cegamente ao princípio de não-contradição. Às vezes, as coisas parecem contraditórias sem realmente sê-lo e, às vezes, a contradição de fato ocorre, seja com coisas humanas ou da natureza. O mundo não acaba por causa de uma contradiçãozinha.
Aliás, o que apreciamos na boa arte, num bom romance é justamente a suspensão dos princípios ditos científicos: o personagem contraditório, a frase ambígua, sentimentos ambivalentes.
Mesmo com todos esses problemas de ordem filosófica -e talvez exatamente por isso-, o Discovery segue sendo meu canal preferido.






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