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O
vocabulário de "Sexo" é intencionalmente
pobre, os personagens, rasos, as expressões, semelhantes
às das vozes que, televisivamente, martelam nossos ouvidos
(2/1/2000)
A
literatura como risco
LUIZ COSTA LIMA
É possível a um relato novelesco tematizar a idiotice
contemporânea sem se converter ele mesmo em idiotice? Mantida
ao final da leitura do segundo livro de André Sant'Anna,
"Sexo" (Sette Letras), a pergunta supõe que saibamos
sua resposta: não.
"Sexo" é uma denúncia feroz, mas eficiente,
realizada ao nível mesmo da linguagem, da imbecilização
róseo-eletrônica com que se encerra o milênio.
Mas que se entende por realização ao nível
da linguagem? Embora creia sabê-lo, nada me garante que saiba
dizê-lo. Começo, pois, pelo título deste artigo.
Ao chamá-lo a literatura como risco, afirmo que tratarei
de uma experiência literária de extrema ousadia. Devo
acrescentar: sua ousadia começa por aparentemente nada dever
ao que se reconhece como literário. Uma amostra de seu começo:
"As caixas de som, No TETO DO ELEVADOR, emitiam a música
de Ray Conniff. O negro, diante da porta pantográfica, fedia.
A gorda, que pisava no calcanhar do negro, fedia. O negro fedia
a suor. A gorda fedia a perfume Avon.
O ascensorista, de bigode, cochilava. O Executivo de óculos
Ray-Ban" etc. O vocabulário é intencionalmente
pobre, as frases, intencionalmente lineares, os personagens, rasos,
as expressões, semelhantes às das vozes que, cotidiana
e televisivamente, martelam nossos ouvidos. Cada história
leva a alguma cama.
Lentes
gigantescas
Como o leitor não considerará "Sexo" equivalente
a um dos tantos pornôs apreciados pelas editoras? Sim, é
possível. E não fará mal algum que o engano
de leitores aumente sua vendagem: para ser eficaz, a crítica
à sociedade de mercado há de passar pelo mercado.
Se esse mergulho no inferno é pouco provável para
o ensaio e altamente improvável para o ensaio teórico,
é passível de suceder na prosa novelesca. A plasticidade
da literatura permite que ela assuma usos não literários.
Mas como a literatura não se descaracterizaria se, de início,
"Sexo" renuncia à identificação literária?
Sumariamente, porque a linguagem banalizada é sujeita a lentes
que a agigantam.
Essas lentes têm a propriedade de converter o que refinadamente
se chama(va) "topoi" em inequívocos clichês.
Os clichês acompanham o corte transversal na sociedade. A
maneira mais direta de verificá-lo consiste em alinhar os
tipos que seriam os personagens. O negro que fede e a loura que
fede a perfume barato pertencem a escalões baixos da sociedade,
assim como as secretárias louras e bronzeadas estão
em escalão intermédio, diferentemente daquele em que
se encontra o jovem casal meio hippie, por sua vez não idêntico
ao do executivo de óculos Ray-Ban, dos executivos de gravatas
com tal ou qual combinação de cores, daquele outro,
descontraído, que usa roupas jovens e tem um carro importado.
Estes se integram em escalão elevado, mas não tão
elevado como o diretor de uma multi ou o negro "pop star",
que, "naturalmente", não fede.
Não há novidade em nada disso: em cada escalão,
reconhece-se a classificação das agências de
publicidade classes C, B, B+, A. Cada um usa clichês, faz
piadas, frequenta lugares e aspira parceiros sexuais e "climas"
diferenciados. Nossa sociedade é tão visivelmente
desigual que não se poderia dizer que há aqui alguma
descoberta. Onde pois estaria a lente de aumento e porque os tipos
são verdadeiros clones? Por efeito de um duplo dispositivo:
quer os tipos tenham ou não tenham nome próprio, seguem
sempre um figurino. Os clichês se congelam em padrões.
Assim o jovem descontraído não dirigirá seu
importado para o mesmo tipo de motel que a loura gorda; e o negro
que fede nem sequer pensará em alugar um quarto de motel.
Obedecer a um padrão, tanto mais rígido porque não
imposto, significa não ter nome.
O nome próprio é um mero cacoete. A identidade é
a do segmento social em que cada um está. Claro que, desigual,
a sociedade não é imóvel. O negro que não
fede, que é um astro pop, que fuma a maconha superior que
cultivara em sua própria fazenda, já fora um borracheiro
que fedia. Em troca, o adolescente que cultiva gostos não
estandardizados apenas se prepara para sua breve integração.
A este dispositivo se agrega um segundo: cada tipo acumula progressivamente
novos clichês, que passam a fazer parte de sua designação,
de modo que a referência a cada um supõe a repetição
da carga acumulada.
O dispositivo vai além da designação dos clones
e se expande ao nível das frases ou mesmo dos períodos.
Passam assim a haver verdadeiros clones-gêmeos, como os dois
jovens executivos, cuja "individualidade" se limita à
diferença das cores de suas gravatas listradas, que têm
noivas igualmente louras, que preferem os mesmos filmes, que lêem
os mesmos artigos da mesma revista etc.
Os clones-gêmeos são induzidos aos mesmos erros, que
levam suas noivas a romperem com eles e, finalmente, a se casarem
cada uma com o ex-parceiro da outra.
O que chamamos de dois dispositivos não atualiza o que, no
vocabulário nobre-clássico, se chamava paródia?
Sem dúvida. Só que a paródia é aqui
tão gigantescamente ostensiva que o nome se torna impróprio.
Precisamos de uma expressão direta para o universo cru. "Sexo"
é o pôster sem retoques, cuja ampliação
revela os grãos de uma sociedade imbecilizante. Mas a imbecilização
por si não é capaz de manter uma sociedade. É
preciso que essa tenha um eixo que, imbecilizante, não se
confunda com o seu produto. Que eixo, pois, tem a sociedade, cujo
microcosmo serve de matéria para "Sexo"?
Seu título já o diz. O que antes se chamaria erotismo
se converte em culto, industrialmente estimulado, do pau e da vagina.
Essa ossatura é tão una que dela não escapa
nem o quarentão de Ray-Ban, nem o psicanalista que, enquanto
lê Freud, pensa na jovem vendedora da butique de roupas jovens.
Mas um elemento não afina com a ossatura, e a dela é
potencialmente desagregadora: os clones dos escalões mais
baixos são atraídos pelo sagrado que não está
nas cogitações dos demais. A igreja a que aderem os
domestica, ensinando-lhes bons modos e não condenando a sexualidade
livre entre os fiéis. Assim fazendo, seus "bispos"
favorecem a ordem social, não são incomodados e asseguram
seu bem-estar. Por que então pensar que tal religioso é
potencialmente desagregador?
A afirmação remete à teoria do sagrado que
René Girard desenvolvera em "La Violence et le Sacré".
Girard tomava como ponto de partida o que chamava o "desejo
mimético" -em vez de o desejo ser definido pela atração
por um objeto, ele se configuraria em razão da existência
de um rival, no desejo. O rival é, ao mesmo tempo, admirado
e odiado. Na medida em que esse mecanismo se estende pela sociedade,
ela é ameaçada por uma violência indiscriminada.
As sociedades arcaicas teriam aprendido a conjurá-la por
meio da escolha de uma vítima expiatória, sobre a
qual se concentraria toda a violência da sociedade.
O sacrifício da vítima, de sua parte, era justificado
em razão de um sagrado, cuja sede de sangue seria aplacada
pela imolação da vítima. Em suma, o sacrifício
constituiria a "boa violência", aquela que simultaneamente
eliminaria a violência indiscriminada e satisfaria o deus
que a instilara nas criaturas. Aqui está a questão.
A sociedade contemporânea elege como vítima por excelência
o pobre feio e velho. Em vez, contudo, de ser ela uma vítima
que condensa e neutraliza a violência indiscriminada, ela
assume o caráter de o excluído.
No vocabulário corriqueiro, é um "loser",
o perdedor, a que se contrapõe a escala dos vencedores. Por
isso mesmo, o "sagrado" contemporâneo interessa
apenas aos excluídos. É certo que seus administradores
procuram um "re-ligare" que favoreça a ordem social.
E esta aceita a nova "religião" enquanto ela desarma
os perdedores. De qualquer modo, os vencedores ignoram tal sagrado
e adoram apenas o sexo indiscriminado. Em termos de Girard, vivemos
o momento avançado da "crise sacrificial", aquele
em que a violência indiscriminada ou já explodiu ou
está em vias de explodir. Seria esse o germe da fratura contra
a sociedade imbecilizante? Ao se ampliar em pôster gigantesco,
"Sexo" converte o pornô em denúncia.
Leia mais: O
afeto de cada um
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