Sermões
numa caixa de madeira
ANTONIO CARLOS OLIVIERI
especial para a Folha
Terminada
a guerra de Canudos, na tarde de 5 de outubro de 1897, quando
se revistava a casa em que morou Antônio Conselheiro,
João Pondé, médico da 4ª Expedição
militar, encontrou uma caixa de madeira, no interior da qual
havia um volume encadernado de 10 cm x 14 cm, manuscrito com
letra elegante e regular, em tinta preta.
Tratava-se de uma coletânea das próprias prédicas
que fizera o líder religioso e aglutinador dos 25 mil
habitantes do arraial.
Submetido aos fiéis do beato, o caderno foi considerado
da autoria dele. Confrontados com duas cartas de Antônio
Vicente Mendes Maciel -atualmente expostas no Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia-, os manuscritos apresentam caligrafia
idêntica. Até o momento, sua autenticidade não
foi contestada.
O livro passou das mãos de João Pondé
para as do escritor Afrânio Peixoto, que o deu de presente
a Euclides da Cunha.
Após a morte de Euclides, a obra foi adquirida num
sebo por Aristeu Seixas, da Academia Paulista de Letras, cuja
família o repassou para o historiador José Calazans,
com quem se encontra atualmente. Calazans cedeu os textos
ao ensaísta Ataliba Nogueira, que os publicou em livro
na famosa série "Brasiliana" da Companhia
Editora Nacional (a Ed. Atlas o está reeditando).
A avaliação das prédicas feita por Euclides
encontra-se em "Os Sertões" (1902): "Uma
oratória bárbara e arrepiadora, feita de excertos
truncados das Horas marianas, desconexa, abstrusa, agravada
(...); transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricável
e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares
da moral cristã e de profecias esdrúxulas...".
Inevitavelmente, o julgamento do autor de "Os Sertões"
é incorreto. Hoje, quando os estudos históricos
e literários já desmistificaram Euclides e seu
suposto cientificismo, inflado pela ideologia, não
é de espantar que se encontre nas prédicas algo
completamente diverso do que descreveu o autor do maior épico
nacional.
De fato, observa-se nas prédicas de Antônio Conselheiro
um discurso organizado e coerente, perfeitamente lógico,
uma vez que se aceitem as premissas religiosas. Em outras
palavras, são sermões que não fariam
vergonha num confronto com os ditos grandes oradores da igreja
brasileira do século passado, como se pode notar pelos
fragmentos a seguir.
A dor de Maria
"Depois de conseguida a licença de Pilatos, os
piedosos discípulos despregaram da cruz o corpo do
Senhor, depositando-o em seguida nos braços de sua
Mãe, e a grande Senhora aperta sobre o coração
aquele sagrado cadáver todo ensanguentado;
deixando em seus vestidos as relíquias desse sangue
adorável, do qual uma só gota bastava para a
redenção de milhares de mundos. Aí pois
tendes, Senhora, esta mirra preciosíssima, este ramalhete
divino, ao qual muito desejáveis abraçar antes
de a campa sepulcral ocultá-lo de vossos olhos. Ah!
como a Santíssima Virgem contemplaria amargurada aquele
corpo pálido e desfigurado? Filho do meu coração,
diria a Senhora, bendita seja a vossa imensa caridade para
com os homens: Eu lhes perdôo as dores que me têm
causado, e desejo que se aproveitem desse precioso sangue
por eles mesmos derramado: porque é sangue de misericórdia
e não de vingança."
O sexto mandamento
"Os dias do homem se desvanecem como a sombra; ele seca
como as ervas; mas vós, Senhor, permaneceis eternamente.
Foi no meio das enfermidades de um leito, acercado da sombra
da morte, que soava outrora este oráculo do profeta
do Altíssimo. Oráculo geral e universal, que
se realiza debaixo da púrpura do rei coroado do diadema,
até o mais humilde pobre abatido na indigência.
Oráculo terrível, a naturez se horroriza dele,
a humanidade o teme, o orgulho procura dissimulá-lo:
mais toda esta dissimulação não serve
senão para confirmar sua existência. Quantos
que hoje pisam as sepulturas de seus pais e com poucos dias
as suas são pisadas por seus filhos, cuja verdade não
necessita de prova. (...) Que é a vida do homem neste
mundo? Não é mais que mera peregrinação,
que vai caminhando com tanta pressa para a eternidade. E assim
não há no homem firmeza, nem estabilidade, que
por muito tempo dure."
Sobre a República
"Agora, tenho de falar-vos de um assunto que tem sido
o assombro e o abalo dos fiéis, de um assunto que só
a incredulidade do homem ocasionaria semelhante acontecimento:
a república, que é incontestavelmente um grande
mal para o Brasil, que era outrora tão bela a sua estrela.
Hoje porém foge toda a segurança, porque um
novo governo acaba de ter o seu invento, e do seu emprego
se lança mão como meio mais eficaz e pronto
para o extermínio da religião. (...) É
evidente que a república permanece sobre um princípio
falso, e dele não se pode tirar consequência
legítima: sustentar o contrário seria absurdo,
espantoso e singularíssimo; porque, ainda que ela trouxesse
o bem para o país, por si é má, porque
vai de encontro à vontade de Deus, com manifesta ofensa
de sua lei divina."
Antonio
Carlos Olivieri é jornalista e pesquisador, autor de
"Canudos" (ed. Ática); prepara um trabalho
sobre as prédicas de Conselheiro.
Leia
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