O Gama de Camões

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

Quando em 1572 Luís de Camões finalmente conseguiu publicar "Os Lusíadas", depois de ter passado 17 anos exilado em terras do Oriente e África, a viagem de Vasco da Gama à Índia já era um fato do passado. O caminho para as Índias fora também trilhado por Camões, mas em condições nada heróicas e numa época em que o império português já dava mostras de exaustão econômica e desarranjo político.

Por isso, a nação e "os barões assinalados" que constituem a epopéia camoniana estão longe daquela imagem que se costuma fazer de "Os Lusíadas": uma rasgada apologia de Portugal. O poema de Camões é bem mais complexo e ambíguo do que os nacionalismos políticos se esforçaram em demonstrar -sobretudo neste século, em que o salazarismo tentou fazer de "Os Lusíadas" o emblema de um país predestinado e triunfante.

Basta que se olhe com atenção o seu protagonista -o Gama- para que se desfaça o equívoco. O capitão Vasco da Gama não tem nada, ou tem muito pouco, dos heróis épicos da Antiguidade. Ele quase sempre vacila, hesita, põe em dúvida o sucesso de sua jornada. No instante mesmo em que as naus estão prontas para zarpar, Gama confessa seu medo da morte, sua "dúvida e receio": "Certifico-te, ó rei, que se contemplo/ Como fui destas águas apartado/ Cheio de dúvida e receio/ Que apenas nos meus olhos ponho o freio". Um temor bastante verossímil, já que uma viagem como aquela, que durava meses e meses, implicava riscos imensos; não era como ir a Miami.

Essa atitude vacilante se repete durante as tempestades em alto mar e em Calicute, onde Gama e parte da tripulação, detidos pelo samorim, só conseguem escapar por meio de um suborno mal disfarçado.

O único feito glorioso do Gama talvez seja a narrativa que ele faz da história do seu país ao rei de Melinde. Nessa passagem, o herói frágil se mostra um poderoso narrador, capaz de dominar inteiramente o seu campo e de construir o mito de uma nação vencedora. Mas o mito construído por Gama também já é passado em relação a ele, muito distante do seu presente histórico, incerto e turbulento.

Ao retraçar a viagem de Gama e inserir, no meio dela, uma representação mítica da história de Portugal, Camões faz simultaneamente um elogio nostálgico do passado português e uma paródia do império que ele conheceu. Império que nunca chegou de fato a exercer uma hegemonia política na Europa e que se encaminhava para uma acachapante derrota no Marrocos, em 1578.

Hoje, o nome de Vasco da Gama está placidamente gravado em placas de rua, praças e clubes esportivos. Mas em 1572 ele era objeto de controvérsias e debates exaltados. Quem sabe pressentindo a ruína iminente da coroa portuguesa, no final do poema Camões investe contra os seus contemporâneos -entre eles os descendentes do Gama-, lançando-lhes os seguintes versos: "Não mais, musa, não mais, que a lira tenho/ Destemperada, e a voz enrouquecida,/ E não do canto, mas de ver que venho/ Cantar a gente surda e endurecida".

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