Três novas biografias tentam reconstituir a vida obscura do capitão Vasco da Gama

O cavalheiro viajante

especial para a Folha

Vasco da Gama, embora seja um dos nomes mais destacados do período das grandes descobertas, continua a ser uma figura em grande parte desconhecida, uma figura cujo feito foi um pouco ofuscado pela aventura americana de seu contemporâneo Cristóvão Colombo. Felizmente, as comemorações em torno dos 500 anos da pioneira viagem rumo ao Índico vieram criar um clima favorável para que se lançasse mais luz sobre a obscura trajetória desse navegador português.

Nos últimos 12 meses, foram lançadas nada menos do que três biografias do argonauta: "The Career and Legend of Vasco da Gama" (Cambridge University Press, 1997), do indiano Sanjay Subrahmanyam (leia entrevista à pág. 5-6), "Vasco de Gama" (Fayard, 1998), da francesa Geneviève Bouchon, e "Vasco da Gama - O Homem, a Viagem, a Época" (Edição Expo'98, 1997), do português Luís Adão da Fonseca.


O homem e a lenda
Esses trabalhos, todos muito bem documentados, tentam, cada um a seu modo, superar um obstáculo quase intransponível: o número reduzido de informações sobre a vida do biografado. Subrahmanyam busca contornar essa limitação dando especial enfoque à época e à construção do mito, oscilando livremente entre o homem e o contexto, a história e a formação histórica da lenda.

Bouchon serve-se do contexto e dos poucos fatos conhecidos da vida de Gama para, a partir de um intenso trabalho interpretativo, recriar a trajetória do navegador. Dessa estratégia resulta, por vezes, uma espécie de narrativa romanceada que em muito extrapola os estreitos limites impostos pela documentação disponível.

Fonseca, como indica o título de seu livro, recorre também ao contexto. O português, todavia, ousa menos que Bouchon no campo interpretativo e é mais comedido que Subrahmanyam na análise crítica dos acontecimentos. Uma rápida passagem por algumas fases da vida de Gama permitirá ao leitor ter uma idéia mais nítida dessas diferenças e conhecer um pouco melhor o percurso desse navegador.


Comportamento belicoso
Admite-se tradicionalmente que Vasco da Gama, o futuro conde da Vidigueira, nasceu em Sines (sul de Portugal) por volta de 1469. A primeira notícia que se tem dele encontra-se num documento datado de 1480, pelo qual ficamos a saber que os três filhos legítimos de Estevão da Gama e Isabel Sodré, Paulo da Gama, João Sodré e Vasco da Gama receberam a prima tonsura, ingressando na Ordem de Santiago.

Uma segunda referência ao navegador aparecerá somente 12 anos mais tarde, num diploma que registra uma rusga entre Vasco da Gama e o alcaide da vila de Setúbal. Esse episódio merece alguma atenção. Consta no documento que Gama regressava à noite para casa, coberto por uma capa, e recusou-se a destampar-se quando solicitado pelo dito alcaide, envolvendo-se numa altercação de razoáveis proporções. Fonseca passa ao largo desse episódio, limitando-se a descrevê-lo. Subrahmanyam, ao contrário, vê no comportamento do jovem navegador os índices de uma personalidade violenta e, à luz do que viria a acontecer na Índia depois, questiona ironicamente a pertinência de se ter enviado um homem com tal têmpera para fazer contato com novos continentes e culturas. Bouchon também não é insensível ao comportamento belicoso de Gama, mas prefere lê-lo à luz da época, salientando quão violentos eram aqueles jovens que, criados como guerreiros, se ressentiam da ausência de batalhas.

Do mesmo ano do referido incidente (1492) é a primeira missão marítima de Gama de que se tem notícia. Conta o cronista Garcia de Rezende que o rei de Portugal, em resposta a uma ação corsária francesa, ordenou que fossem apreendidas as mercadorias de dez naus ancoradas no porto de Lisboa e enviou a Setúbal e ao Reino do Algarve, para que realizasse ação semelhante, Vasco da Gama, fidalgo de sua casa, homem em quem ele confiava e que servia em armadas e "cousas do mar".

É quase certo que Gama executou, antes e depois dessa data, outras missões, cujos registros não resistiram ao tempo. Na verdade, desse período da vida do navegador (1492-1497) restaram pouquíssimos registros. Tal hiato traz sérios problemas para os biógrafos, pois deixa sem resposta uma questão fundamental: por que Vasco da Gama foi o escolhido para capitanear as quatro embarcações que rumaram para o Índico em 1497? O que prevaleceu na nomeação, a sua experiência marítima ou as suas ligações políticas enquanto fidalgo da casa d'El Rei e cavaleiro da Ordem de Santiago?


Empreendimento arriscado
A hipótese mais polêmica é defendida por Subrahmanyam. Para o historiador indiano não é improvável que a nomeação de um obscuro Vasco da Gama se tenha dado por não querer d. Manuel apostar o seu prestígio num empreendimento demasiado arriscado, empreendimento que estava longe de ser consensual no interior da corte portuguesa. Subrahmanyam avança ainda uma segunda hipótese: a de que o nome de Gama foi imposto pelos opositores do rei, muitos dos quais ligados à Ordem de Santiago.

Para Fonseca, o mais provável é que a escolha se tenha dado, por um lado, em razão da confiança que d. Manuel depositava em Gama, homem criado nos círculos reais; por outro lado, pelo fato de que o navegador apresentava o perfil adequado para uma missão de caráter político e diplomático. Tratava-se, afinal, não somente de traçar uma nova rota comercial, mas também, e sobretudo, de descobrir, no longínquo oceano Índico, aliados cristãos dispostos a varrer com os mouros de Jerusalém. Bouchon demonstra uma certa preferência pela tese da experiência marítima de Gama -uma experiência supostamente adquirida em missões exploratórias no Atlântico-, admitindo, contudo, que as informações disponíveis são insuficientes para permitir uma conclusão segura.


Presentes ordinários
Menos controversas são as opiniões desses biógrafos acerca da viagem pioneira de Gama. Do ponto de vista marítimo, todos salientam, a empresa foi bastante bem sucedida. O futuro conde da Vidigueira não descobriu somente a rota para o Índico, ele descobriu a melhor rota para o Índico. Do ponto de vista comercial e diplomático, porém, os resultados foram bem mais modestos. Pelo que se depreende do diário da viagem de Vasco da Gama, único relato conhecido da aventura, d. Vasco enfrentou enormes dificuldades no contato com os nativos, primeiro na costa da África (São Brás, Moçambique, Mombaça e Melinde), depois em Calicute.

Nessa cidade, especialmente, o desconhecimento dos códigos de
conduta da sociedade local, somado à dificuldade em abandonar certas pré-noções sobre a Índia, comprometeram em muito a sua missão comercial/diplomática. D. Vasco, que, mesmo depois de visitar um templo bramânico, continuou a crer que os indianos praticavam uma espécie singular de cristianismo, não avaliou devidamente a importância que tinham os comerciantes muçulmanos na cidade, e logo se desgastou com esse influente e poderoso grupo.

O caso dos presentes para o samorim de Calicute foi ainda mais desgastante. Gama, que se fez anunciar como o embaixador do poderoso rei de Portugal, calculara muito mal o grau de sofisticação e riqueza do governante de Calicute. As ofertas que levava, certamente escolhidas com base na experiência portuguesa na costa atlântica da África, suscitaram comentários sarcásticos do feitor do samorim.

Esse incidente deixou sequelas de ambos os lados: os portugueses ficaram bastante ofendidos com o que lhes pareceu ser um gesto de profunda arrogância dos nativos; os indianos, por sua vez, passaram a olhar com desconfiança aqueles visitantes que se diziam representantes de um grande rei, mas que traziam presentes tão ordinários. A partir desse incidente, a já tensa relação dos portugueses com as autoridades locais deteriorou-se rapidamente, culminando na retirada tumultuada da pequena frota de Gama.

Depois de uma penosa viagem de retorno -mais tarde se constataria que a estação não era propícia nem para atravessar o Índico nem para dobrar o cabo-, d. Vasco viveu momentos de glória. A notícia de seu feito logo se espalhou pela ainda incrédula Europa, e d. Manuel, ansioso por contrapor ao herói de Castela, Cristóvão Colombo, um vulto à altura, tratou de conceder inúmeros benefícios ao desbravador lusitano.

Negócios da Índia
Enquanto d. Vasco colhia os louros da sua façanha, rumava para a Índia a frota de Pedro Álvares Cabral, que experimentou, depois de achar o Brasil, momentos amargos tanto no cabo da Boa Esperança, onde perdeu seis embarcações, quanto em águas e terras indianas. A Cabral seguiu-se João da Nova, cuja missão, de caráter eminentemente exploratório, foi cercada de sigilo.
Mas os negócios da Índia continuaram mergulhados num clima de grande incerteza. A viagem de Cabral correra da pior maneira, culminando com o saque da feitoria portuguesa instalada em Calicute e com o assassinato dos lusitanos que a ocupavam. Era urgente tomar medidas drásticas. Retorna então à cena o capitão Vasco da Gama, agora encarregado da difícil missão de vingar os chacinados e consolidar a presença lusitana na região. D. Vasco partiu de Lisboa em 10 de Fevereiro de 1502, à frente de uma poderosa esquadra, composta por 15 navios e 800 homens de armas.

Essa segunda e comercialmente bem sucedida passagem de Gama pelo Índico -os biógrafos são unânimes em destacar- foi extremamente violenta. Em Quíloa, onde teve uma recepção pouco cordial, o capitão das Índias, pelo poder dos canhões, obrigou o sultão local a pagar 1.500 miticais de ouro ao rei de Portugal. De Quíloa, a frota rumou para Cananor e daí para Calicute. Foi a caminho dessa cidade que teve lugar a cena mais dramática da expedição. A certa altura da travessia, a frota de Gama localizou e capturou um navio de peregrinos que retornava de Meca. Depois de rápidas negociações -inviabilizadas pela intransigência de d. Vasco- e uma feroz e desigual batalha (os muçulmanos defenderam-se com pedaços de pau e outras quinquilharias que encontraram no navio), o capitão mandou incendiar a nau, causando a morte de 250 pessoas, entre as quais muitas mulheres e crianças.

Ao lado de Camões
Em Calicute, o comportamento de Gama não foi menos controverso. Logo que ancorou, a esquadra prendeu meia centena de malabares. Vendo que as negociações com as autoridades locais não avançavam, o capitão ordenou que esses prisioneiros fossem enforcados e que seus pés e mãos, depois de cortados, fossem levados à cidade juntamente com uma declaração de guerra ao samorim. Violenta ou não, o certo é que a segunda viagem de Gama à Índia deu início à implantação de fato dos portugueses na região.

Dom Vasco, depois de um longo período de ostracismo, voltou mais uma vez à Índia (abril de 1524), dessa feita na qualidade de vice-rei. O poderoso conde da Vidigueira, entretanto, pouco pôde demonstrar dos seus dotes administrativos. Doente e cansado, morreria oito meses depois, naquela que foi a primeira e que seria a última (a reincorporação à Índia deu-se somente em 1961) cidade portuguesa na região, Goa. Nesse solo, seu corpo permaneceria até 1538, quando foi trasladado para a Vidigueira (Portugal). Em pleno século 19, o corpo mais uma vez mudou de lugar. Seu destino foi o Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, onde ainda hoje jaz ao lado de um homem que muito colaborou para a construção do seu mito, Luís Vaz de Camões.
(JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA)

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