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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
01/08/2005
Dá para confiar em brasileiro?

No ano passado , 474 jovens morreram na cidade de São Paulo vítimas de acidentes com motocicletas; a maior parte deles é motoboy. No primeiro semestre deste ano, foram mais 171 mortes, conforme o divulgado na semana passada. Nesse período de 18 meses temos, portanto, uma média de um caso por dia.

Para ter uma medida de comparação, em 30 anos de conflito armado na Irlanda do Norte, encerrado com festejos mundiais na última quinta-feira, desapareceram precocemente 3.600 vidas - dez mortes por mês.

Note-se que estou me referindo apenas a São Paulo. Os números nacionais, ainda nem sequer computados, certamente são bem maiores e integram a lista das 30 mil mortes por ano por causa do trânsito -quase todo o conflito irlandês.

Acidentes com motos são um dos grandes ceifadores de jovens no país e revelam uma rede de cumplicidades, numa espécie de assassinato coletivo. Esse massacre é possível porque os governos não fiscalizam, as empresas contratam jovens despreparados e exigem que façam entregas o mais rapidamente pelo menor preço. Os consumidores não se incomodam, caso a encomenda tenha chegado às mãos.

A imensa maioria das pessoas prefere, porém, culpar os motoboys, chamando-os de irresponsáveis, selvagens, incivilizados.

O caso dos motoboys ilustra como os brasileiros reagem à mazelas nacionais, como os casos de corrupção. O brasileiro acha que a culpa, em geral, é sempre dos outros, como mostrou uma bateria de pesquisas divulgadas na semana passada pelo Datafolha.

Metade dos brasileiros (49%, para ser mais exato) não conhece um político honesto. Lula sai-se melhor, mesmo assim apenas entre 20% dos entrevistados. Aproximadamente 70% dos cidadãos sentem mais vergonha do que orgulho dos deputados e senadores. Isso significa que, numa hipótese absurda, se fechassem o Congresso não haveria assim tanta indignação.

Quase todos se consideram honestos: 83% dizem que não trocariam os votos por dinheiro. Mas 73% acham que seus compatriotas não resistiriam à sedução. Traduzindo: a culpa é do outro. Ou seja, sou honesto e responsável. Mas os outros -os políticos e meus vizinhos não merecem confiança.

Traduzindo ainda mais, os brasileiros imaginam que não dá para confiar em brasileiro.

Se os brasileiros se consideram honestos e têm vergonha de seus políticos, por que não elegem gente séria?

A explicação para esse paradoxo está no efeito motoboy, no qual se detecta uma cadeia de omissões e cumplicidades.

Antes de votar, o eleitor não estuda direito a vida do candidato e, depois, não acompanha seu desempenho. Caso acompanhe, não reclama, não manda e-mail, não protesta.

É como se o indivíduo fizesse uma compra sem analisar o produto. Não vê as garantias, não se interessa pela procedência e não compara os preços. Depois de pagar, descobre que o que comprou não presta e passa a responsabilizar apenas para a loja.

Na lógica do sou-honesto-culpado-é-outro, Lula responsabiliza o PT pela crise, apesar de sua íntima relação com os pivôs das acusações, a começar por José Dirceu. Também acusa as "elites" e a imprensa por estarem insuflando a onda de denúncias.

O PSDB se comporta como se esse debate de caixa dois de campanha fosse dos outros, mesmo depois de flagrada a ajuda a seu presidente, Eduardo Azeredo, pelo mesmo duto que ajudava o PT. A culpa, gritam os tucanos, é de petistas que procuram desviar o foco das investigações.

Como o PT já não tem muitas explicações, está tentando alargar mesmo as investigações para que todos se transformem em mira. Quer que a CPI levante os dados desde os tempos de Fernando Henrique Cardoso.

Como o crime é geral, não haveria a quem culpar. Esse jogo de ilusões custa caro. Prestamos pouca atenção sobre como usam dinheiro público, não só por causa dos políticos que elegemos e não fiscalizamos. Nosso maior ralo de recursos públicos não é a corrupção, mas o desperdício. Gastam-se por ano, no país, cerca de R$ 200 bilhões em programas sociais, mas os indicadores são ruins, péssimos; vamos pior do que nações economicamente mais pobres.

Pais não se envolvem nas decisões das escolas. Conselhos municipais, estaduais e federais, com a participação da sociedade civil, para acompanhar questões de saúde, educação, assistência social ou ambiente ainda são frágeis. Não se discute Orçamento, não se conhecem indicadores dos projetos. Daí, em parte, o enorme espaço para o marketing, sempre em busca da simplificação. Confunde-se o simples e o simplório.

No final, a culpa não é de ninguém, mas alguém sempre paga a conta.

PS - A propósito das culpas, neste mês um grupo de motoboys da cidade de São Paulo vai usar uma faixa branca no braço para pedir paz. A idéia é arrebanhar o maior número possíveis de jovens, montados em suas motos, para tentar diminuir o morticínio. Muitas empresas, que se gabam de suas atitudes socialmente responsáveis, não se sentem culpadas ao exigir que os motoboys corram como doidos no trânsito. Mas seus executivos se incomodam quando o retrovisor do carro é atingido por um deles.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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