REFLEXÃO


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folha de s.paulo
01/09/2008

Vilas da fantasia

A Vila Madalena, assim como uns poucos bairros de SP, está mais próxima de Manhattan do que da Cidade Tiradentes


As disparidades de São Paulo estão resumidas em dois bairros que se chamam, coincidentemente, Itaim.

No Itaim Bibi, na zona oeste, 80% dos moradores entre 25 e 34 anos formaram-se no ensino superior. É uma espécie de ilha da fantasia, quando comparado ao Itaim Paulista, rodeado de pobreza da zona leste, onde, naquela faixa etária, 10% têm diploma universitário.

Mais do que a escolaridade para conseguir bons empregos, pesam os hábitos culturais. No Bibi, quase todos aqueles adultos lêem jornais, revistas e acessam a internet diariamente.

Na distância entre as duas regiões Itaim, o Bibi e o Paulista, encontra-se o mais difícil (e o mais importante) desafio da cidade: descentralizar o conhecimento e os empregos.

Como demonstra a pesquisa Datafolha publicada hoje, intitulada DNA Paulistano -agora com foco na zona oeste-, há, na cidade, "ilhas da fantasia". Nelas, mora uma ínfima elite, cercada de realidade de todos os lados, ou melhor, cercada de São Paulo por todos os lados. Aquilo que se diz de Brasília, onde morei por 13 anos, encontramos com precisão em São Paulo -aliás, continuo numa ilha da fantasia, tão distante da realidade como o plano-piloto.

Quando estou em Manhattan, sinto-me tão em casa como na Vila Madalena, os dois locais onde trabalhei nos últimos 11 anos.

Apenas um sinal: se você entrar na Livraria da Vila encontrará cenas estranhas como uma lista de mais vendidos quase sem livros de auto-ajuda. Ou, mais estranho ainda nos tempos atuais, uma vendedora que relata, com prazer e profundidade, sobre alguns dos livros recém-lançados. É o caso de Cida Saldanha, cuja opinião é capaz de influenciar, na hora da compra, tanto ou mais do que a resenha de um crítico. Vai também ver que o pessoal que serve o café escreve diariamente numa lousa pensamentos de escritores.

Na lógica da cidade partida, a Vila, assim como uns poucos bairros, especialmente na zona oeste, está muito mais próxima de Manhattan do que da Cidade Tiradentes. Ou seja, tão longe de São Paulo. Mas a novidade não são as linhas de exclusão provocadas pela disparidade de conhecimento, mas um consenso que começa a se montar em torno de uma ousada solução.

É um projeto muito mais ambicioso do que as ações destinadas a revigorar a região central como a cracolândia. Vamos reconhecer, aliás, que, graças à ação dos últimos prefeitos e dos investimentos culturais, o centro está ganhando vida, atraindo empresas e, em especial, faculdades. Mas é pouco.

O projeto mais ousado para enfrentar a lógica da cidade partida faz parte, há muito tempo, dos sonhos de alguns urbanistas: reciclar a orla ferroviária. Esse tipo de visão faz do Rodoanel, tão esperado, algo simples e com baixo impacto.

A boa notícia é que começa a fazer parte dos planos dos candidatos. Com os cofres mais cheios, os governos federal, estadual e municipal conseguem tirar esse tipo de projeto da dimensão do delírio.

Os planos da orla ferroviária alteram-se nos detalhes dependendo do urbanista, mas, em essência, o que se pretende é transformar as áreas abandonadas em torno da linha do trem, onde antes trafegava a riqueza das indústrias, em zonas mistas de negócios e moradia.

É uma operação retorno, trazendo a população da periferia, que mora longe do trabalho.

O grande atrativo é óbvio: já existe na orla transporte público em cima de trilhos. Seria, então, um mecanismo para descentralizar o emprego e melhorar a habitação.

O urbanista Candido Malta está realizando estudo para o governo estadual que, entre outras coisas, foca no repovoamento desses espaços.

Segundo seus cálculos, só na cidade de São Paulo haveria, em torno dos trilhos, uma área do tamanho de Santos a ser conquistada. A idéia é abranger toda a região metropolitana e envolver um consórcio de prefeituras. "É uma nova fronteira a ser explorada", anima-se Candido.

Na verdade, é a maior fronteira urbana a ser explorada no Brasil -é uma tarefa para muitos governos federais, estaduais e municipais. Para atrair empresas, seriam necessários, além de obras de infra-estrutura, incentivos fiscais.

Nesse projeto de operação retorno, estaria uma chance de conectar a cidade partida -e lugares como Vila Madalena, Jardins ou Itaim Bibi poderiam ficar mais próximos de São Paulo do que de Manhattan.

PS - Para visualizar o que estou falando sobre orla ferroviária, observe os prédios que surgiram na Água Branca, atraindo os mais diferentes tipos de negócios -e, agora, chegam shoppings de luxo. Observe também o que se passa na Vila Leopoldina, também ladeando o trilho do trem, batizada da Vila Mídia, por estar atraindo inúmeras empresas de publicidade e audiovisual que estão ocupando galpões industriais abandonados. Se quiser fantasiar, imagine o que seria esse tipo de empreendimento espalhado em 130 quilômetros de ferrovia que cortam a região metropolitana. Isso é pensar grande uma cidade.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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