REFLEXÃO


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urbanidade
03/09/2008

O primeiro aplauso

Começou inseguro, voz trêmula; mas à medida que a platéia percebia o nervosismo, aplaudiam mais forte


O migrante nordestino Lourival Rodrigues já estava aposentado, sempre se queixava de alguma dor no corpo e ficava quase todo o dia trancado em casa, no Jardim Ibirapuera, um daqueles cenários desolados na periferia da zona sul -nada a ver, portanto, com o parque Ibirapuera. Foi quando inesperadamente recebeu seu primeiro aplauso público. Desde então, sua vida mudou, até parou de reclamar de doença. O primeiro aplauso ocorreu por causa de um verso. Lourival soube de um boteco na zona sul chamado Bar do Zé Batidão onde se liam poesias. Entre rappers, sambistas, pagodeiros e poetas, Lourival encheu-se de coragem e leu seu texto. No meio da ovação, uma mulher aproximou-se dele e esbravejou: "Você arrasou". Ele olhou desconfiado: "Eu não sabia que arrasar não era acabar com alguma coisa". Os elogios tiveram um gosto de revanche íntima, não só porque tiraram Lourival da invisibilidade mas também porque o colocaram como um dos personagens de um documentário, lançado na segunda-feira passada, sobre saraus na periferia.

Quando estava prestes a se aposentar, Lourival foi chamado para declamar uma poesia na festa de final de ano da empresa em que trabalhava como vigia. O pessoal estava mais interessado no churrasco, na cerveja e na caipirinha. Não só as palmas foram poucas -afinal, a poesia tinha de competir com o barulho dos copos e das risadas-, como foram entremeadas com algumas vaias e deboche de alguns bêbados. "Fiquei um pouco triste." Sua rotina de aposentado queixoso mudou quando lhe falaram do sarau no Bar do Zé Batidão, organizado pela Cooperifa. Foi lá, com um papel no bolso, e leu os versos. Começou inseguro, voz trêmula. Mas à medida que a platéia percebia o nervosismo, aplaudiam mais forte. "Eles sabem estimular a gente." Ficou tão estimulado que, desde então, passou a declamar sozinho poesia em cima da laje de sua casa de dois dormitórios. "Assim ninguém reclama."

Por ser o mais velho da turma, Lourival foi adotado. "Ele é nosso talismã", brinca Sérgio Vaz, criador da cooperativa e organizador do sarau. Em meio a vigias, motoristas, taxistas ou funileiros que se encantam pela poesia, aparece Lourival no documentário "Povo Lindo, Povo Inteligente", dirigido por Sérgio Gagliardi e Maurício Falcão, sobre os saraus da periferia. Mas seu grande momento está por chegar, agora, aos 72 anos -algumas das poesias de Lourival serão publicadas num livro. "Quem diria, virei autor."

PS: Coloquei abaixo as imagens dos aplausos para Lourival.

Vídeo: Lorival declama poesia e é aplaudido

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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