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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
04/01/2004

Lições da rua


José Rivera tinha 16 anos em 1991, quando levou um tiro e entrou em coma. Morreu apenas em julho passado. Depois de vegetar por 12 anos numa cama de hospital, ele ganhou, na edição de sexta-feira passada do "The New York Times", exatamente 11 linhas, dispersas num artigo da editoria de assuntos da cidade. Aquelas linhas quase clandestinas tiveram, para mim, o impacto de uma manchete, menos pela história daquele jovem preso a uma cama de hospital e mais pela contabilidade fúnebre.

Ocorre que Nova York comemorou, em 2002, a marca histórica de menos de 600 assassinatos por ano (mais precisamente, 587), atingindo o patamar de 1963, ano em que eu tinha sete anos de idade e costumava andar sozinho, sem me sentir ameaçado, nas redondezas da loja de meu pai no centro de São Paulo, na época uma cidade bem mais segura do que Nova York.

A notoriedade fugaz de Rivera se deve justamente àquela marca histórica. Como ele só morreu no ano passado, o assassinato foi registrado em 2003. A prefeitura não queria virar o ano com mais de 600 homicídios. Passada a meia-noite, as autoridades policiais puderam, enfim, comemorar: 596 assassinatos.

O anônimo jovem latino, perdido no tempo, por pouco, muito pouco, não ofuscou o orgulho estatístico em relação ao crime. O caso me chamou a atenção, nesses dias que passei em Nova York, porque me lembrou como nós, brasileiros, especialmente os metropolitanos, tão metidos na banalização da violência, já não contabilizamos a selvageria.

É preciso sair do país, nem que seja por uns dias, para voltar a sentir como perdemos nosso senso de indignação, acostumados à degradação.

Nada nos incomoda cotidianamente mais do que a violência, mas não sabemos quantas pessoas são vítimas de homicídio. Nem sabemos (até porque não existem) as metas de segurança fixadas pelas autoridades. Nenhum governador (vamos repetir, nenhum) comprometeu-se, com percentagens, a reduzir ao longo de seu mandato os índices de criminalidade; sabe, afinal, que corre o risco de desmoralizar-se rapidamente.

Se um presidente tivesse semelhante comportamento com indicadores econômicos, seria deposto logo após a posse. Suponha-se que Lula não estabelecesse metas de inflação ou de crescimento econômico para este ano e, pior, nem se incomodasse em fixá-las. Diriam, claro, que o país está desgovernado, sem rumo, perdido. E que o presidente é um maluco.

Diariamente somos informados sobre a taxa de inflação, de juros, sobre o saldo da balança comercial, sobre a performance da indústria etc. Isso porque sabemos que são indicadores vitais.

O problema é que não aprendemos ainda, vítimas de nossa longa história de elites culturalmente indigentes e da disseminada exclusão social, que os indicadores de educação, de saúde e de segurança também são vitais e deveriam ser acompanhados em detalhe. Os mais ricos privatizaram por conta própria os serviços públicos, e dane-se o resto. Pergunte ao jornalista mais bem informado quais são as metas sociais do Brasil. Não terá resposta; se tiver, serão números vagos, perdidos em documentos oficiais. Não foram assimilados nem pelo governo, muito menos pela sociedade, o que, por si só, já demonstra nossa crise social.

Aprendemos, no Brasil, o valor da estabilidade financeira, e o empenho ortodoxo nesse primeiro ano de Lula é mais uma prova inequívoca dessa conquista. Ainda não aprendemos, de verdade, mas apenas em discurso, o valor da inclusão. Estamos longe de acreditar, de fato, no valor da educação pública. Os países que mais avançaram socialmente foram aqueles que acreditaram na importância de disseminar o conhecimento e transformaram essa crença numa vontade obsessiva das famílias, das empresas, da mídia. É o culto ao capital humano. Não sabemos quais metas queremos atingir em determinado ano para que melhorem os níveis de aprendizado de português ou matemática. Não sabemos quantos alunos gostaríamos de ver no ensino superior.

Não conhecemos, até porque não existem, os planos que articulam as várias esferas do poder para que se atinjam metas sociais, a serem cobradas pela sociedade. As primeiras manchetes do ano, no Brasil, se referem ao saldo da balança comercial, o que todos nós consideramos adequado. Sabemos exatamente quantos dólares entraram e saíram, numa rígida contabilidade.

Mas a contabilidade que nos vai fazer crescer, de forma sustentada, não está apenas na macroeconomia, discurso oficial e oficioso da esquerda e da direita. Precisamos saber quantos alunos estão na escola, recebendo educação de qualidade. Vamos ter de acompanhar esses dados como seguimos os saldos da balança comercial.

São esses critérios que deveriam se prestar para uma análise objetiva do desempenho de presidentes, de governadores e de prefeitos. Afinal, esse é o único meio possível para que, no futuro, tenhamos a sorte de, quem sabe, andar nas ruas sem medo -e poder contar cada morte, comemorando a diminuição da violência.

PS - Para uma vítima da selvageria metropolitana, nenhum prazer pode ser maior numa cidade do que andar nas calçadas largas, com os motoristas acuados diante dos altivos pedestres. E sem que tenhamos de olhar, desconfiados, para trás. A civilidade de uma cidade se mede exatamente pelo tamanho das calçadas -daí se vê a barbárie em que nós, paulistanos, estamos metidos nesse início de comemoração dos 450 anos de São Paulo.

 


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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