REFLEXÃO


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folha de s.paulo
06/08/2007

A celebridade das três mortes anônimas

A lição por trás dos dados de violência é o modo como as comunidades se organizam em torno de desafios comuns

Apenas três pessoas foram assassinadas no final da semana passada na cidade de São Paulo, com seus 11 milhões de habitantes. Tão distante dos tempos em que se registravam 60 homicídios nos fins de semana, esse fato transforma aquelas três mortes anônimas em celebridades históricas. Uma das explicações para a estatística é o frio especialmente intenso naqueles dias. Noites geladas são um estímulo para ficar trancado em casa.

O frio teria, entretanto, pouca influência sem a redução contínua do número de assassinatos desde 1999.

Estatísticas divulgadas na quarta-feira revelam que, comparando o primeiro semestre daquele ano com o de 2007, a queda foi de 70,7%. Traduzindo: menos 310 mortes todos os meses, o que equivaleria a menos três tragédias do vôo 3054 da TAM a cada dois meses. Em 20 anos de regime militar, foram mortos cerca de 300 opositores políticos.

A situação ainda está longe do aceitável, mas a redução do número de assassinatos na cidade de São Paulo nos dá uma dica não apenas de segurança mas também de administração pública em geral.

As cidades que baixaram o número de assassinatos com intensidade apresentam uma série de características em comum. Uma delas, provavelmente a principal, é o uso apropriado da informação para concentrar esforços nas áreas vulneráveis.
William Bratton, chefe de polícia de Nova York, foi um dos responsáveis por montar, na cidade, um mapa do crime não apenas bairro por bairro, mas rua por rua. Com base nessa distribuição geográfica e em indicadores, os esforços de repressão foram mais bem coordenados e, além disso, os policiais foram avaliados em seu desempenho.

Bratton é agora chefe de polícia de Los Angeles, onde aplicou os mesmos métodos que desenvolveu em Nova York. Mais uma vez, ele está obtendo bons resultados.
No final dos anos 90, São Paulo criou um banco de dados (o Infocrim) inspirado no modelo nova-iorquino -foi justamente quando começou a curva descendente do número de assassinatos.

A grande lição por trás dos dados de violência, útil para qualquer área da administração pública, é o arranjo local -ou seja, o modo como as comunidades conseguem se organizar em torno de desafios comuns. Em Nova York, Los Angeles, Bogotá, Medellín e São Paulo, quanto mais o esforço policial se combina, nos bairros, com programas educativos, melhores os resultados.

Aqui foram as campanhas de desarmamento, as articulações comunitárias pela paz, o aumento da matrícula escolar no ensino médio, as escolas abertas nos fins de semana, a diminuição da incidência de gravidez precoce, os projetos de fundações empresariais e de ONGs, o combate ao excesso de consumo de álcool. Nesse ambiente, foi mais fácil lançar os planos de policiamento comunitário.

Já sabemos como os arranjos produtivos locais conseguem fazer pequenos milagres econômicos. Um bairro abandonado do Recife torna-se exportador de software; Piracicaba e Sertãozinho, em São Paulo, recebem romarias de estrangeiros para aprender sobre etanol; uma pequena e bucólica cidade mineira (Santa Rita do Sapucaí) produz invenções como a urna eletrônica.

O que não se conhece ainda é a eficiência dos arranjos educativos locais, capazes de reduzir o crime e de qualificar o capital humano, quando se aprende a gerenciar o que está próximo. Cidades brasileiras pobres, graças a esses arranjos, nos quais se integram diversas áreas de governo, exibem um notável desempenho em saúde e educação.

Por causa dessa teia, algumas delas oferecem educação em tempo integral (o que significa a criança ficar mais tempo na escola do que na rua ou na frente da televisão) com apenas R$ 30 a mais por mês. Com pouco dinheiro, reduzem a incidência de doenças facilmente tratáveis.

Diante da esterilidade de pensar o Brasil apenas por Brasília e pelos palácios de governo -ou de espasmos sem rumo como o movimento batizado de "Cansei"-, uma das saídas é apostar no local, repensando o papel dos gestores das cidades, a começar de seus bairros. Assim podemos esperar menos do que está longe e mais daquilo que está próximo e que depende também de nós -isso é a cidade contemporânea.

A sensação de potência desta proximidade, quando vemos os problemas e os resultados, é o melhor caminho para nunca ficar cansado. Olhar o Brasil apenas dos palácios do governo, seja qual for o governo, é de abater qualquer ânimo.

PS- Em contraponto à esterilidade do "Cansei", sugiro prestar atenção em outro movimento, no qual existem muitos empresários e executivos de grandes empresas, batizado de "São Paulo, Nossa Cidade". Estão sendo criados indicadores para pressionar por melhores políticas públicas para São Paulo -além da fiscalização, serão oferecidas sugestões. O primeiro teste desse movimento ocorrerá em 22 de setembro, quando se comemora o Dia sem Carro, que, até agora, é uma data inexpressiva no país. Pretende-se fazer desse dia um momento de reflexão e de mudança sobre como construir comunidades mais respeitosas e civilizadas.


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Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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