REFLEXÃO


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folha de s.paulo
07/07/2008

Dançando na luz

A beleza dos corpos, iluminados pelos holofotes, contracenava com os movimentos daqueles seres vestidos de farrapos

Na quinta-feira passada, eram 19h quando deixei o prédio da Folha e, depois de dez minutos de caminhada, me vi inesperadamente metido numa coreografia.

Consumidos pelo crack, dezenas de homens e mulheres pareciam inumanos, irreais, alguns berrando, outros estatelados no chão. A cena desenrolava-se entre as ruas Guaianazes e Vitória, a poucos metros da rua Aurora, onde existe uma delegacia de polícia. Aquela era apenas uma imagem rotineira da cracolândia, onde as palavras vitória e aurora soam como ironia macabra. Para completar a ironia, estamos no bairro da Luz.

A novidade surgiu quando atravessei a rua e entrei pela porta de um galpão, quase totalmente vedado, no número 485 da rua Vitória, onde 36 jovens de periferia ensaiavam para um musical a ser lançado em agosto. Como estavam frescas as cenas que eu tinha visto do lado de fora, era como se o espetáculo misturasse as duas coreografias, separadas apenas por uma porta -a beleza dos corpos, iluminados pelos holofotes, contracenava com os movimentos daqueles seres vestidos de farrapos ou enrolados em cobertores velhos e fedorentos, cujos rostos só apareciam fugazmente pela luz da chama dos cachimbos de crack.

A beleza se destacou nesse choque de imagens tão contrastantes, cujo único ponto entre as coreografias era a idade dos jovens.

Começou a funcionar no galpão um teatro-escola criado por Ivaldo Bertazzo, que, nos últimos anos, vem se dedicando a trabalhar a dança com jovens de periferia do Rio e de São Paulo.

O que ocorre naquele clandestino espaço mostra que essa junção da arte com a educação é uma das melhores receitas contra a barbárie, por gerar a sensação de pertencimento, reverência ao belo, prazer e perspectiva de futuro -está aí um dos importantes assuntos a serem tratados pelos candidatos a prefeito.

Não tenho números para comprovar, mas aposto que, entre as múltiplas causas da extraordinária queda da violência na cidade de São Paulo -estima-se que, neste ano, a redução do índice de assassinatos vá ser de 80% em relação a 1999- está a expansão da cultura combinada com a educação, especialmente na periferia. Esse não é nem de longe o principal fator, mas ajuda a criar um clima mais acolhedor.
Esse é um dos fatos novos da cidade de São Paulo, onde, segundo o Datafolha, nada preocupa tanto quanto a insegurança -muito mais do que, por exemplo, o trânsito.

Criados na gestão de Marta Suplicy e ampliados com Gilberto Kassab, os CEUs ainda não se notabilizaram pela excelência acadêmica -a nota dos alunos está na média da capital, o que é ruim, mas funcionam como centros comunitários que são verdadeiros oásis culturais na periferia. Neste ano, receberam também o programa Fábrica de Cultura, mantido pelo governo estadual.

Diversas escolas municipais passaram a ter oficinas de arte em contraturno e a ser estimuladas a se conectar mais com teatros, museus e cinemas. Geraldo Alckmin criou as escolas estaduais de tempo integral (a exemplo dos CEUs, sem bons resultados nas notas), que oferecem opções culturais -é o que ocorre num programa ainda mais amplo (Escola da Família), também da gestão de Alckmin, que deixa as escolas abertas nos fins de semana.

Há programas municipais e estaduais, muitos dos quais concentrados nas periferias, de dança, música, teatro e comunicação, instalados nos mais diferentes espaços. Foi institucionalizada a cultura do hip hop; basta ver que São Paulo é referência mundial em grafite. Há dois anos, foi criado um atraente centro para a juventude na Brasilândia, zona norte da cidade. Tudo isso se soma à rede do Sesc e do Sesi.
Nos últimos anos, têm prosperado nas comunidades experiências como a orquestra do maestro Bacarelli, em Heliópolis, os saraus de poesia da Cooperifa, na zona sul, e a biblioteca criada no que foi um ponto de tráfico de drogas na favela Sabin, uma iniciativa de Mano Brown e Ferréz.

Há vários programas desse tipo no Jardim Ângela, que, no passado, foi apontado como a região mais violenta do planeta; perto dali está um cemitério conhecido como o lugar com mais adolescentes enterrados por metro quadrado. Hoje, aquela região é conhecida, também mundialmente, por seu programa de articulação pela paz.

Uma pesquisa do Datafolha mostrou que cresce expressivamente a presença de estudantes mais pobres nos museus -isso se deve, em parte, à atratividade de lugares como o Museu da Língua Portuguesa.

Todos esses fatos significam que, nesta campanha municipal, é importante prestar atenção à viabilidade das propostas que mesclam educação e cultura, apresentadas na semana passada.

Kassab se compromete a criar a "escola de sete horas"; Marta afirma que vai ampliar o horário de aulas, tirando mais proveito dos espaços culturais da cidade; Alckmin diz que vai dar prosseguimento, agora na esfera municipal, ao projeto de tempo integral nas escolas. Nada disso indica que São Paulo seja um paraíso cultural -a cidade, aliás, está mais para os viciados em crack do que para os dançarinos de Bertazzo, mas vai aprendendo a dançar nas luzes.

PS - Um dos registros mais impressionantes que conheço sobre o poder da arte de transformação em comunidades periféricas será apresentado, na próxima semana, no Sesc. Durante vários anos, a fotógrafa Mila Petrillo viajou pelo Brasil documentando crianças e adolescentes das regiões pobres submetidos ao encantamento da arte. As fotos estão neste link.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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