REFLEXÃO


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folha de s.paulo
23/06/2008

Vacina Sabin contra a violência

Mano Brown e Ferréz ajudaram a transformar uma boca-de-fumo na zona sul de São Paulo em biblioteca

Frequentada por adolescentes, uma casa dentro da favela Sabin (os moradores pronunciam "Sabín") servia de "boca" para distribuição de drogas na zona sul de São Paulo.

Há dois anos, aquele espaço se transformou num laboratório de testes para a aplicação de uma vacina contra a violência. Saíram as drogas, entraram os livros.
O rapper Mano Brown e o escritor Ferréz, cujas músicas e textos traduzem a marginalidade da periferia metropolitana, fizeram daquele ponto de tráfico uma biblioteca, que recebe, diariamente, cerca de 120 crianças e jovens e atualmente tem um acervo de 2.000 livros.

Nessa metamorfose de drogas em livros há uma questão essencial a ser tratada nas eleições municipais -pelo menos, isso é o que sugere uma pesquisa do Datafolha.

A pesquisa do Datafolha informa que os eleitores paulistanos estão convencidos de que o prefeito deve saber inventar esse tipo de vacina para curar a doença da violência. Estariam iludidos ou desinformados sobre os limites da ação de um governante? A experiência de Mano Brown e de Ferréz mostra que os eleitores podem até estar iludidos sobre os poderes de um governante, mas não estão desinformados.

Na lista de angústias do paulistano, a segurança aparece, de acordo com o Datafolha, em primeiro lugar (19%). A preocupação cresce ainda mais dependendo da renda do entrevistado -chega ao patamar de 20% a 23% entre os que têm maior poder aquisitivo. Esse problema é bem maior do que o propalado incômodo com o trânsito.

Na visão dos eleitores, portanto, o prefeito, apesar de não comandar a PM e a Polícia Civil, deve ter como seu grande desafio ajudar a criar uma cidade em que seus habitantes não se sintam tão vulneráveis, ameaçados de perigo a cada esquina.

A segurança não deveria ser uma tarefa quase exclusiva do governador? Não.

Até para uma nação acostumada com as cenas da barbárie urbana, chocou a informação de que militares que cuidavam da segurança de uma favela no Rio de Janeiro entregaram jovens a traficantes rivais para receberem punição.

É como se a "poliomielite" da violência fosse paralisando qualquer instituição. Nem o Exército estaria vacinado contra esse mal. O que se vê é que, depois de atingir certo grau da doença, nem mesmo a terapia da força funciona. Daí certamente o incômodo da opinião pública.

A raiz do problema está menos na ineficiência policial do que na inaptidão de as crianças e jovens se imaginarem com perspectivas. Não há dúvida de que parte dessa inaptidão resulta de carências locais é a falta de centros de saúde, de espaços para lazer e cultura, de programas de assistência social.

Basta ver a informação divulgada na sexta-feira pelo Ministério da Educação sobre a qualidade do ensino nos municípios brasileiros.

As escolas nas regiões metropolitanas perdem das escolas do interior, onde costuma existir maior capital social, ou seja, uma convivência mais pacífica e produtiva entre seus habitantes. O professor não é um anônimo, mas um personagem reconhecido e admirado pela comunidade; a família é mais próxima dos filhos. Baixo capital social se traduz em baixa visibilidade dos indivíduos, que vivem em permanente anonimato.

O sindicato dos professores de São Paulo fez greve, na semana passada, pelo direito de os professores continuarem trabalhando em alta rotatividade e conseguirem se transferir rapidamente de uma escola.

É mais uma reação à violência que cria um círculo vicioso. Quanto maior a rotatividade de professores e diretores, mais difícil criar uma equipe capaz de fazer os alunos e suas famílias valorizarem a escola.

Uma prova disso está no município de Taboão da Serra -mais uma daquelas paisagens desoladoras na região metropolitana brasileira. Lá se inventou a figura do "professor visitador", que ganha um bônus para ir à casa da família dos alunos. A visita tem mudado o olhar dos pais e das crianças sobre a escola. Resultados já medidos: melhores notas e menor evasão.

Há sinais preliminares de que esse fenômeno se repete na periferia de Belo Horizonte, onde alunos da rede municipal participam de atividades complementares comandadas por universitários em algum espaço do bairro um parque, por exemplo.

A pesquisa do Datafolha traduz-se da seguinte forma: o eleitor está esperando que o prefeito seja um grande articulador de planos federais, estaduais e municipais para reduzir a sensação de desamparo. No fundo, querem algo parecido a converter uma boca de drogas em biblioteca. O problema é que, na administração pública, muitas vezes se converte uma biblioteca em algo tão degradado como um ponto de tráfico -se você imagina que eu estou exagerando, visite bibliotecas de colégios da periferia.

PS - Na semana passada, a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo divulgou números que mostram ser a probabilidade de morrer no trânsito idêntica à de morrer assassinado. Daí se tem uma noção da vulnerabilidade do cidadão em São Paulo.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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