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REFLEXÃO


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urbanidade
11/08/2004
Memória por um fio

Quando tinha quatro anos de idade, Drauzio Varella perdeu a mãe; pouco tempo depois, ficou sem a avó. A morte povoava um cenário de seis décadas atrás -o bairro do Brás, habitado pelos imigrantes italianos e espanhóis, onde famílias viviam não raro amontoadas em ambientes insalubres.

Desde menino decidido a ser médico, Drauzio viveu rodeado de cenas fúnebres, além da perda da mãe e da avó. Eram comuns na paisagem caixões em que homens e crianças eram carregados. "A penicilina só começou a se disseminar depois da Segunda Guerra Mundial", lembra. Levaria ainda muito tempo até que se espalhasse a vacinação para prevenir doenças da infância.

As ruas eram uma extensão dos quartos da garotada. "Vivíamos nas ruas até porque as casas eram pequenas." Não eram só espaço de brincadeiras. "Havia freqüentes guerras de gangues. Italianos do sul odiavam italianos do norte, e ambos não gostavam dos espanhóis."

Ao escrever "Por um Fio", livro lançado nesta semana, em que conta a relação que, como médico, compartilhou com pacientes terminais, Drauzio fez uma volta, embora não a tenha explicitado, às perdas da infância. Mas as enfermidades das pessoas "por um fio" que povoavam o Brás e impressionaram o futuro médico são menos importantes em sua formação do que a determinação de um imigrante espanhol -no caso, o seu pai. É a melhor lembrança de vida que tem do Brás. Seu pai não parava de repetir que todos os seus filhos deveriam fazer uma faculdade. "Os jovens, muitos ainda adolescentes, logo iam trabalhar nas fábricas."

O filho de imigrante espanhol ficou longe do trabalho e, glória suprema do pai, entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Virou o primeiro grande médico comunicador brasileiro, um exemplo de uma profissão ainda pouco conhecida: a educação pela comunicação. Apesar da notoriedade, não perdeu uma mania do menino do Brás: continua a andar a pé pelas ruas. "É quase como se fosse uma brincadeira."

Assim como as ruas do Brás deixaram o adulto, Varella começou a lidar com a idéia, tão forte em seus pacientes e comum quando já passamos dos 60 anos, de ir aos poucos se despedindo da vida e ficando por um fio.



Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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