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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
21/11/2005
Cidadania 24 horas

Fragmentada pela miséria e murada pela violência que a transformam num arquipélago de guetos, São Paulo estará unificada, neste final de semana, pela diversidade cultural. Não se tem registro, na cidade (e nem em qualquer outra cidade brasileira), de tantos eventos artísticos tão diferentes acontecendo em tão pouco tempo. A cultura é, nesse caso, o menos importante.

Mesclam-se, num único evento, rock, cordel, reggae, pagode, baião, samba, música erudita, sacra e eletrônica. Há de tudo para todos os gostos e quase ao mesmo tempo nos mais diferentes tipos de palco -de uma sala de concerto a um viaduto- que se estendem do centro à periferia. Estão usando como palco para leitura de poesias até mesmo um cemitério; um grupo de teatro resolveu encenar uma peça, dividida em cenas espalhadas pela cidade durante 24 horas.

Independentemente do número de pessoas que participem da chamada "Virada Cultural", arrisco dizer que é um evento histórico, por revelar o desenho do futuro possível de uma metrópole.

Quando você estiver lendo essa coluna, o desenho do futuro de uma cidade já estará se desfazendo. Voltaremos à rotina dos guetos e das diferentes manifestações de violência.

Quando se fala em violência, pensamos em assaltos, roubos, seqüestros. Mas existem outras formas como as calçadas escassas para os pedestres, a feiúra crônica da poluição visual e sonora, os motoboys estendidos no chão, os meninos pedintes separados pelos muros de vidros blindados de automóveis.

A violência aparece nos 30% dos alunos do ensino infantil do município de São Paulo com anemia, devido à alimentação ruim; a incidência é de 57% em crianças de até dois anos de idade. Não é necessário ter estudado medicina para saber que a anemia, especialmente a provocada pela baixa presença de ferro no organismo, torna tão provável uma criança prestar a atenção numa aula quanto um adulto se concentrar numa palestra técnica, depois de passar a noite numa balada e ficar sem dormir. São 70% de alunos com cáries; 10% com algum problema de vista, 20% sofrendo de verminoses e 30% de dificuldade auditiva. Muitos não aprendem porque não usam óculos. Nem estou falando de distúrbios psicológicos sem tratamento.

A violência cotidiana é apenas a conseqüência da incompetência de toda uma comunidade que não sabe lidar com suas fragmentações e desigualdades. Mais importante do que a qualidade dos shows e a quantidade de espectadores nessa maratona cultural é a visualização de uma cidade que, apesar de sitiada, resiste e mostra o que há de melhor nela pela diversidade do conhecimento -e aí está o desenho de futuro.

Se há uma monumental história de incompetência e selvageria, ocorre também uma história de resistência, movida pelo instinto de sobrevivência. O principal objetivo dessa resistência dispersa, sem líder e manifesto, é a noção de que a civilidade depende da partilha do saber.

Os sinais dessa resistência se notam na redução dos índices de homicídios, em favelas e bairros periféricos paulistanos, em proporções jamais vistas. Também aparecem no número de alunos que possuem o diploma de ensino médio -85% dos jovens até 21 anos-, muitos dos quais ralando de noite e nos finais de semana em cursos supletivos. Aparecem na disseminação de cursinhos pré-vestibulares na periferia e nos programas complementares oferecidos às escolas públicas, a maioria delas abertas nos finais de semana. Destacam-se os batalhões de jovens voluntários das escolas de elite ou dos programas sociais das empresas.

É articulado, neste momento, um manifesto a ser assinado pelas mais importantes personalidades e instituições brasileiras para fazer da educação a prioridade entre as prioridades. Seu lançamento deve acontecer, no próximo ano, no Museu da Ipiranga. O cenário sugere a idéia de que a soberania da nação depende da autonomia de seus cidadãos -e, sem educação de qualidade, essa independência sempre será frágil.

Pretende-se estabelecer uma agenda, monitorada periodicamente, sobre como deveríamos estar, em 2022, quando se comemora o bicentenário da independência do Brasil.

Exatamente nisso -a aposta da democratização do conhecimento como fator de unificação de um país, e não apenas no território- que reside o simbolismo de um arquipélago de guetos, selvagem, que, pelo menos em ínfimas 24 horas, se integra pela arte, ou seja, pelo prazer da partilha do conhecimento.
Só a educação, porém, conseguirá produzir a cidadania 24 horas. Mas, então, não será fugaz.

P.S. - Por falar em educação e resistência. Começa na próxima semana, em São Paulo, um movimento para pressionar o governo federal a regulamentar a lei de aprendizagem. Se essa lei sair do papel, seriam criados, segundo o Ministério do Trabalho, 650 mil empregos para jovens. Depois dos episódios de Paris, nossas autoridades deveriam pensar melhor sobre o que significa deixar os jovens sem perspectiva.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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