REFLEXÃO


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urbanidade
24/12/2008

A calçada da fama

Samuel teve um sonho que o projetou para a vida de escritor. "Sonhei que alguém estava arrancando meu coração.

Aposentado, ex-cobrador de ônibus, o migrante nordestino Samuel Salles é um escritor frustrado. Nunca conseguiu ninguém disposto a publicar seu livro e teve de apelar para a rua. Nos finais de semana, espalha na calçada da avenida Paulista dezenas de cartolinas com as frases de sua obra e, com isso, além de leitores, ganha um dinheiro para complementar a aposentadoria. Falante e banguela, ele torce para o dia em que algum editor passe na frente de seu livro estendido no chão e resolva publicá-lo. "Enquanto isso, pelo menos não estou no anonimato."

Além de buscar um bico para complementar a escassa renda de aposentado, Samuel teve um sonho que o projetou para a vida de escritor. "Sonhei que alguém estava arrancando meu coração."

Samuel não sabe explicar por que o sonho o levou a escrever, mas o fato é que, naquela madrugada, começou a redigir suas primeiras frases e se auto-intitulou "Pensador".

A vida na escola dava pistas de que o menino seguiria a rota errada da sua vocação se fosse cobrador de ônibus. "Não tinha dinheiro para fazer uma faculdade." Na escola, Samuel conta que era chamado pelos professores de "O Moralista", porque tinha o hábito de sair pregando ensinamentos -mesmo sem saber o que significava, os colegas optaram pelo apelido.

No chão da Paulista, se lêem frases como: "A verdadeira prudência é apenas a capacidade de governar o próprio coração". Ainda sobre os perigos das emoções: "Para quem busca a verdade, coração é um péssimo conselheiro".

Sobre a vaidade: "Se você se acha bonito, charmoso e inteligente, ponha uma roupa de mendigo numa cidade estranha. Só assim você conhecerá seu verdadeiro valor". Sobre a virtude: "O bom senso e a prudência me ensinaram a não confiar no excesso de bondade e de humildade".

O livro reserva um olhar desconfiado para as mulheres. "O homem só descobre que casou com a mulher errada quando fica desempregado". Ou: "Por causa das musas, que só amam os bem-sucedidos, muitos heróis viram bandidos".

Samuel Salles diz que nunca casou porque não descobriu quem o amasse e nem a quem amar. Não teve filhos e mora com uma irmã. Seu grande projeto é o livro. Pergunto-lhe quantas pessoas lêem sua obra de rua. Ele pensa, pensa e aposta: "Talvez mil pessoas por dia".

Digo-lhe que, com essa audiência, ele já pode se considerar um best-seller, especialmente para uma obra de filosofia. Ele sorri, orgulhoso. "É mesmo?" Pergunto quanto ele arrecada com as doações -afinal, ele espalha latinhas entre os cartazes. Num bom dia, chega até R$ 100, o que também não o coloca mal entre uma boa parte dos escritores.

Existe um transtorno que diferencia Samuel dos demais escritores.
Primeiro, a chuva. Mas, pior do que a chuva, são os fiscais da prefeitura.
"Se pelo menos eles parassem para ler."

Coluna originalmente publicada na Folha Online, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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