21/02/2003
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05h09
"Arca Russa" discute a questão da identidade na Rússia
INÁCIO ARAUJO crítico da Folha
"Que país é este?" é a atônita pergunta que nós, brasileiros, fazemos. Talvez seja também a de Aleksandr Sokúrov, ao percorrer o museu Hermitage, antigo Palácio de Inverno.
Sua câmera segue o Estrangeiro, um diplomata de não se sabe que tempo, cuja capacidade consiste em se deslocar por momentos da história russa, ao mesmo tempo em que se move pelas salas do palácio, encontrando czares como Pedro, o Grande, Catarina 2ª, Nicolau 1º, frequentando bailes, assistindo a cerimônias solenes etc.
A câmera é o olho de alguém, de Sokúrov, presume-se, pois dela provêm os comentários, poucos porém mordazes. A história que se descortina não é contínua. Ora estamos no museu, em meio aos quadros, ora na corte.
A empreitada é de difícil reconhecimento para o espectador que, como eu, desconhece a história do país. Mas existe nela algo de maravilhoso, já do ponto de vista técnico: Sokúrov fez seu filme num único plano, usando tecnologia digital, e conseguiu evitar os riscos supostos neste tipo de empreitada (perdas de ritmo, hipótese de se tornar desinteressante).
Existe, assim, um duplo movimento, de continuidade e descontinuidade. A continuidade, enunciada pelo tratamento formal. A descontinuidade, pelo deslocamento, errático em aparência, do diplomata pelo palácio.
O todo é envolvido pela questão sobre a identidade russa. Seria um país oriental, eslavo ou um país europeu. Estamos em São Petersburgo, ex-capital do império, fundada no início do século 18 por Pedro, o Grande, e signo desse dilema Ásia/Europa (pois Pedro via a Rússia como um país europeu).
E é de Europa que se trata nos bailes, na coleção de arte. Seria porém uma Europa de segunda classe? É esse o outro aspecto do dilema de Sokúrov, seja pelo que nos mostra como pelo que omite.
Por omissão entenda-se o período da Revolução Russa, os 70 anos de comunismo que fizeram da ex-URSS um pólo mundial e provavelmente a levaram ao isolamento temido por Pedro, o czar. E tal fantasma, mesmo implícito, frequenta o palácio de Sokúrov.
Mas o que interessa ao realizador é a renovação das dúvidas e angústias sobre a identidade e o destino desse país antes e depois da revolução. Angústias profundas, a julgar pela cena final, em que um horizonte pelo menos sombrio se descortina diante de nossos olhos, momento em que o filme se volta para o futuro sem otimismo, e em que aqueles fantasmas que frequentavam o palácio calam-se definitivamente. E em que seu silêncio produz a sensação de um país à deriva.
Arca Russa (Rússki Kovtcheg) Direção: Aleksandr Sokúrov Produção: Rússia, 2002 Com: Sergei Dreiden e Maria Kuznetsova Quando: a partir de hoje nos cines Frei Caneca Unibanco Arteplex, Lumière e Sala UOL de Cinema
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