Folha Online Ilustrada  
Crítica
31/10/2001 - 10h43

Cineasta iraniano faz panorama do continente africano

INÁCIO ARAUJO
da Folha de S.Paulo


A primeira imagem prenuncia o melhor e o pior. Pior porque, logo vemos pelo fax que corre na tela, "ABC África" é um filme de encomenda. Melhor porque uma encomenda que se expõe de maneira tão clara não pode ser qualquer coisa.

Abbas Kiarostami ainda é um dos maiores cineastas do mundo em atividade. Vale, portanto, o risco de vê-lo fora do Irã, filmando em digital e tratando de um assunto de deixar com o pé atrás: os órfãos de Uganda. Assunto grave demais, portanto terreno fértil para a demagogia.

O que vem a seguir é uma espantosa viagem à África profunda. Primeira questão: o que é a África? É o continente que ficou fora da globalização. Não serve nem como mercado emergente, nem como cenário de filme exótico. A África é, para todos os efeitos, o criador do vírus da Aids. Um continente esquecido.

Essa é sua imagem, em todo caso. Resta o que Kiarostami mostrará. De início, a chegada, o hotel chique. Depois, a câmera, quase turística, encanta-se com as roupas, as cores, os rostos. A vitalidade dos cantos, as crianças que jogam futebol, as pessoas tímidas diante do aparelho que capta imagens dão conta de uma miséria perceptível, mas não espantosa.

O cineasta e seus assistentes pegam estrada. Começam a entrar em Uganda. Visitam o local onde uma senhora se ocupa de órfãos. É quase uma tapera. Na parede de uma casa, uma foto do papa, inerte. À medida que se avança pela estrada, começamos a compreender o sentido do fax, logo no início do filme: há no país 1,6 milhão de órfãos. Não há sinal de guerra. A guerra civil já passou por aqui.

Mas há ainda os órfãos da Aids, da malária. Os cineastas param num hotel. As luzes se apagam. Lá os apagões não são exceção nem ameaça, são a regra cotidiana. Nós nos damos conta de que essa miséria é diferente da do Brasil. Aqui temos a miséria da exploração da desigualdade. Lá, a do esquecimento. A frase do fax, esperando que o filme de um cineasta de prestígio informe ao mundo o que se passa por lá, é irrisória. Não há esperança. Isso é o horror.

A visita a um centro de tratamento de aidéticos nos dá conta disso em definitivo. Passemos pelos sons de choro, pelos rostos esquálidos. Pela imagem do papa na parede, com sua pompa inútil, e os dizeres no cartaz: a virgindade é a melhor proteção contra a Aids. Então tá.

Quase ao acaso, a câmera surpreende uma enfermeira cobrindo um pequeno corpo. Em seguida, leva o corpo até uma bicicleta. A bicicleta e seu condutor dão uma réstia dignidade ao cadáver sem caixão. Para onde será levado? O filme silencia. Não há mais dúvida: a África é o coração das trevas pós-colonial. Daqui não sairão terroristas suicidas, nem guerra bacteriológica. Bactérias, talvez -eis o papel da África na globalização, fornecer novos males aos demais continentes.

Kiarostami não nos diz nada disso. Nada do que importa está nele ou vem dele. Podemos chorar com o que vemos. As imagens não: limitam-se a registrar, friamente, o que as câmeras vêem.

Cada vez que o carro se põe em movimento pelas estradas de asfalto cercadas de árvores, a próxima parada reserva uma surpresa. Ora, num hotel, um casal europeu com o órfão recém-adotado. Ora a menininha que luta para colocar sobre a cabeça e carregar um feixe de madeira. Ora o rosto encarquilhado de uma senhora. Velha ou envelhecida? Quantos anos terá?

Ora, ainda, os pés descalços, o instrumento de percussão, o ritmo, a dança, o sorriso. Pois, apesar de tudo, Kiarostami deixa-se espantar com a beleza que o homem, nas condições mais adversas, é capaz de produzir. É como se dissesse ao partir, à maneira do título de um de seus filmes: vida e nada mais. Apesar de tudo, contra tudo. Ou, para resumir: trata-se de um filme espantoso, mas o que menos importa é o filme, e sim a vida que amealha fragmento após fragmento, apesar de tudo.

 Serviço

ABC Africa
Direção: Abbas Kiarostami
Produção: Irã/França, 2001
Quando:hoje, às 19h10, no Cineclube DirecTV; e amanhã, às 19h, no Cinemark Market Place



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