22/05/2001
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05h02
Livro: "A Carta Esférica" é entretenimento com verniz erudito
JOSÉ GERALDO COUTO da Folha de S.Paulo
Umberto Eco, um dos intelectuais mais brilhantes de nossa época, causou indiretamente grande dano à literatura ao abrir caminho, com "O Nome da Rosa", para o "romance de entretenimento metido a besta", gênero do qual o espanhol Arturo Pérez-Reverte é hoje um dos mais aclamados representantes.
Em que consiste tal vertente literária? Numa combinação esperta de trama de aventura com pinceladas de erudição.
No caso de "A Carta Esférica", acompanha-se, nos dias atuais, a busca de um tesouro antigo: esmeraldas que teriam afundado no Mediterrâneo com um barco dos jesuítas, no século 18.
Como nos romances de Chandler e Hammett, o protagonista do livro, Manuel Coy, um marinheiro afastado do mar por ter encalhado um navio, é arrastado a essa busca por uma bela e misteriosa mulher, Tánger Soto.
A esse par central vêm se juntar -ou, antes, se contrapor- um caçador de tesouros inescrupuloso e seu assecla, um ex-suboficial e torturador argentino, cuja descrição no livro -baixinho, engomadinho, infame e cerimonioso- parece inspirada em personagens vividos por Peter Lorre no cinema americano.
A história até que tem seu apelo: modernos piratas procuraram por um tesouro em pleno Mediterrâneo, o mar mais domesticado, congestionado e poluído do mundo.
O problema, para começar, é que metade do livro é ocupada pelas explicações de Tánger sobre o barco naufragado: a tripulação, a origem da carga, o contexto histórico, as condições do naufrágio. Tudo recitado como uma aula, com bibliografia e tudo.
Essa pseudo-erudição não consegue esconder a extrema superficialidade dos personagens e da ação, que, reduzida a suas linhas básicas, não difere muito da receita "aventura, romance e mistério em ambientes exóticos", os livrinhos da série "Sabrina".
A começar pelo perfil romântico do protagonista, um marinheiro desajustado de jeans e tênis que ouve "cool jazz" e emite frases feitas sobre os segredos do mar.
As metáforas náuticas se sucedem monótonas: "Mas a vida não manobra com a exatidão de um bom barco, e pouco a pouco as amarras foram caindo no mar", "essas sombras só continuavam ancoradas em sua memória", "a vida era uma carta náutica estalando de nova". E daí para pior.
Ah, mas há também o humor, elemento indispensável nos livros do gênero. O de "A Carta Esférica" é intermitente e colegial. Baseia-se em grande parte nas "leis" inventadas pelo protagonista para rir da adversidade. Exemplos: LDMF (Lei de Dançar com a Mais Feia) e LLMPD (Lei do Leva Muito e Pouco Dá). É de morrer de rir.
Por fim, há um truquezinho narrativo. A história é contada em terceira pessoa, mas, no penúltimo capítulo, o narrador -um professor da Universidade de Murcia- se introduz na ação, em primeira pessoa, interagindo com os outros personagens.
Mas ele se limita a recitar uns verbetes e logo sai de cena, devolvendo o texto à sua natureza básica: uma narrativa linear, em terceira pessoa, com um único foco narrativo, com acesso à consciência do protagonista e uso frequente do discurso indireto livre.
Ou seja, uma literatura de transparência da representação, que não questiona seu estatuto "realista". Enfim, uma literatura pré-Henry James, pré-Machado de Assis, pré-Joyce, pré-tudo.
Que seja lida como entretenimento, tudo bem. Mas que não tente se misturar com a dos autores citados e venerados pelo marinheiro Coy: Melville, Stevenson, Conrad.
Se nesses escritores o que se busca é uma expressão literária que dê conta de suas inquietações interiores, em autores como Pérez-Reverte o interesse está na comunicação com o maior número possível de leitores. Em outras palavras, está no mercado.
Os valores estéticos e éticos -o rigor, a inteligência, a originalidade, a coragem- foram substituídos por um só: a "eficiência", medida em exemplares vendidos.
A Carta Esférica La Carta Esférica Autor: Arturo Pérez-Reverte Tradução: Rosa Freire d'Aguiar Editora: Cia. das Letras Quanto: R$ 34,50 (529 págs.)
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