06/09/2002
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03h25
"Tortura Selvagem" de Afonso Brazza é puro instinto
EDUARDO VALENTE da Folha de S.Paulo
O espectador "educado", ou seja, aquele que frequenta o chamado "circuito de arte", certamente não vai considerar "Tortura Selvagem" um filme passível de discussão crítica. Afinal, é mais fácil lidar com fenômenos como o de Afonso Brazza, ao realizar o seu cinema quase caseiro, como objeto de um "freak show", como figura emblemática da nossa incapacidade crônica e quase cômica, mambembe. Jô Soares, por exemplo, exercita o ato de tornar ridículas figuras como a dele, para deleite da platéia inteligentíssima.
É fácil rir de Brazza pelo que ele possui de índice da nossa própria precariedade. Em tempos de afirmação de excelência técnica do cinema nacional, ele filma com negativo vencido, sem controle de luz atento, sem atores, sem domínio da chamada decupagem. Mas, principalmente, ele representa um atentado a toda noção do que seja um cinema aceitável para nossos olhos cheios de "cultura".
Muito mais difícil seria gastar um minuto para perceber no cinema de Brazza indícios fascinantes de uma linguagem audiovisual pura, intocada. Efetivamente mal-educado (pois não aprendeu a se portar), seu filme nos remete aos primórdios do cinema, quando ainda não havia gramática a ser seguida. Uma época quando a simples superposição de imagens e sons, ou a ordenação aleatória de imagens, construía relações inesperadas de continuidade e lógica, ou uma pura fascinação.
Seus filmes são a explosão de um imaginário incontido, de uma paixão irracional, de um desejo de fazer cinema a qualquer custo. Aqueles que liberarem suas mentes poderão se divertir bastante. Rindo com o filme, e não do filme.
Como descrever os planos perdidos de um singelo céu com nuvens, no meio de um tiroteio? Ou um personagem que grita ao longo do filme "Apareça, Maicon!!", quando não conseguimos nem localizá-lo geograficamente?
Liberdade narrativa O espectador pode até pensar em Woo, Seijun Suzuki, Peckinpah ou nos filmes baratos de kung fu como parâmetros de olhar. Melhor seria pensar no cinema nacional, na liberdade narrativa dos filmes de Roberto Farias que têm Roberto Carlos como protagonista, por exemplo. Mas estes são de uso consciente do arsenal imaginativo e livre do cinema. Brazza é puro instinto. Se há um cineasta sequer próximo a ele no impulso criador (embora com implicações e modelos diferentes), seria José Mojica Marins, que, aliás, aparece neste filme.
Quanto a cotações, como qualificar se não há parâmetros? As quatro estrelas são completamente inadequadas, assim como a bola preta, que indica total falta de interesse, tudo que seu filme não tem. Ficam então as duas estrelas como indicador de que há algo aqui a ser descoberto, aos que estiverem dispostos.
Eduardo Valente é cineasta e editor do site "Contracampo"
Tortura Selvagem Produção: Brasil, 2002 Direção: Afonso Brazza Com: Zé do Caixão, Rodolfo, Digão, Claudette Joubert e Liliane Roriz Quando: a partir de hoje nos cines Interlar Aricanduva e Cine Arte Lilian Lemmertz
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