Livraria da Folha

 
18/06/2010 - 10h35

Saiba como escrivão bêbado batizou José Saramago; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Primeira biografia sobre Saramago mostra fatos curiosos da escola
Primeira biografia sobre Saramago mostra fatos curiosos da escola

Primeira biografia de José Saramago, "Saramago: uma Biografia" (LeYa, 2010), do escritor também português João Marques Lopes, acompanha a vida de um dos escritores mais importantes da história da literatura portuguesa.

Em 248 páginas, Lopes radiografa do nascimento do autor em Azinhaga, Golegã, até o lançamento do polêmico "Caim".

No trecho abaixo, extraído do primeiro capítulo da obra, o biógrafo relata os primeiros estudos de Saramago. Uma das curiosidades reside no fato do autor ter guardado o caderno de notas da quarta série, no qual o professor Vairinho avaliava diariamente as lições dos alunos.

Outra memória interessante descrita por Lopes e contada por Saramago diz respeito ao conhecido incidente que transformou o menino José de Sousa em José de Sousa Saramago. O próprio autor explicou em "As Pequenas Memórias" o engano cometido pelo escrivão bêbado durante o registro do seu nome.

*

1. O menino pobre
(1922-1933)

A escola primária

Na década de 1930, quando Saramago fez sua formação escolar, o país apresentava indicadores educativos bastante deficitários. No começo da década, como dissemos, a taxa de analfabetismo era de 61,8%, e acrescente-se que apenas 34% das crianças entre os sete e os catorze anos estavam alfabetizadas. Em média, ao longo da década, dificilmente haveria mais que 50 mil alunos por ano nos liceus e nas escolas técnicas, pois em 1940 os números oficiais indicavam 74 mil inscritos após uma década de crescimento contínuo. As universidades contavam certamente com bem menos que uma dezena de milhares de privilegiados, alcançando, também em 1940, o número ridículo de 9 mil matriculados.

Portanto, e não obstante as dificuldades socioeconômicas da família, a criança pôde seguir caminhos que estavam até então vedados à maioria da população. Chegaria mesmo a completar o equivalente ao atual nono ano de escolaridade, marco inatingível para a maior parte dos jovens daquele tempo.

Entre o fim dos anos 1920 e 1933, o pequeno José completou a escolaridade básica, carregando as velhas ardósias e lousas que as crianças usavam na época. Em um estabelecimento particular da rua Morais Soares, antes mesmo de entrar no ensino oficial, aprendeu as primeiras letras. Na Escola Primária da rua Martens Ferrão e na do Largo do Leão cursou desde a primeira à quarta série. Naquela, ficou apenas durante um ano letivo, o de 1930-1931. Nesta, permaneceu mais tempo e chegou a efetivar a proeza de cursar a segunda e a terceira séries num único ano letivo (1931-1932).

Na crônica "O melhor amigo do homem", Saramago apresentou pela primeira vez recordações da escola:

[...] dos tempos da velha instrução primária oficial, com aulas da parte da manhã e feriado à quinta-feira. (Havia pouco que ensinar nessas pré-historicas eras: a pacífica análise gramatical, os bons exemplos da História Pátria e os volteios dos quebrados e decimais. O professor, Vairinho de seu nome, era um homem alticalvo, grave quanto bastava para acentuar a responsabilidade da sua posição de diretor, mas, ainda assim, nosso amigo e nada exagerado na disciplina.

O escritor conservou até os dias atuais o caderno de notas da quarta série, no qual esse respeitável e afável professor Vairinho avaliava diariamente as lições dos alunos. As de Saramago eram, em geral, boas: "os maus foram poucos, no máximo dois ou três, os suficientes não muitos, os bons abundaram e não faltaram os ótimos".

Outra memória associada aos idos da escola primária remonta ao próprio ato da matrícula no estabelecimento da rua Martens Ferrão e concerne ao conhecido incidente onomástico que transformou o menino José de Sousa em José de Sousa Saramago. Até a apresentação obrigatória da certidão de nascimento para efeitos de inscrição no primeiro ano ninguém tomara conhecimento de tal equívoco. Por várias vezes, o escritor explicaria o caso. Em "As Pequenas Memórias", escreve:

Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registo Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamado ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai) e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu por conta e risco acrescentar Saramago ao lacônico José de Sousa que o meu pai pretendia que eu fosse.

 
Voltar ao topo da página