Livraria da Folha

 
10/05/2010 - 18h07

Medo do diferente é pai do preconceito, diz Lya Luft em "Múltipla Escolha"; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Autora discute sobre como o ser humano tem de realizar escolhas
Autora discute sobre como o ser humano tem de realizar escolhas

Nos ensaios de "Múltipla Escolha" (Record, 2010), Lya Luft debate a velhice e a juventude, os novos dilemas e tabus da sexualidade, o bullying, a comunicação virtual, entre outras questões.

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A autora rebate a suposta liberdade que alcançamos ou que pensamos ter atingido. Ela nos mostra o quanto uma cultura impositiva faz com que as pessoas vivam a síndrome do "ter de".

No trecho abaixo extraído do livro, Lya descreve como o medo e o preconceito não são fatores passivos, mas ativos. O diferente, segundo ela, parece ameaçador e, consequentemente, desperta a hostilidade alheia. E isso, coage o cidadão e lhe impõe o pavor no meio onde vive. "O medo do diferente é o pai do preconceito", diz.

Lya também nos mostra como a sociedade cultiva o determinismo racial com base no preconceito. "Culpabilizar uma raça e vitimizar a outra não ajuda a ninguém: promove o ódio racial, assim como palavras irracionais podem promover ódio de classes."

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Medo e preconceito. O medo do diferente é o pai do preconceito, que por sua vez abre feridas na alma. Porém nos ensinaram que temos de ser iguais, inclusão geral. Então, para não sermos diferentes, portanto objetos de suspeita ou rejeição clara, mentimos uma igualdade impossível. Melhor seria entender, cultivar e afirmar nossas diferenças - não como fator de ódio, mas de um espaço de crescimento natural de todos para um melhor convívio.

Boa parte dos nossos medos é um legado atávico dos homens das cavernas, fator de sobrevivência primitivo. Ainda nos contamina, pois mesmo quando se busca honradamente a imparcialidade, os preconceitos estão à espreita, em nós ou na esquina. Dinheiro e educação não nos liberam dessa secular lavagem cerebral que a cultura nos incute, abraçados à qual giramos pela vida.

O diferente parece ameaçador: queremos preservar nossa individualidade, tememos que o outro nos prejudique. O que não entendo, o que não é igual a mim, seja na cor, no formato dos olhos, na cultura, nas origens, na profissão e nos afetos, desperta minha hostilidade irracional.

Atormentar colegas na escola, perversidade do momento, nasce disso: o menino de óculos, o que não gosta de esportes, o que toca violino em vez de guitarra, a menina gordinha, a mais feiosa, o que não nada no mesmo clube chique, o que tem outra cor de pele, o negro, o oriental, a colega que não usa roupa de grife, o rapaz que prefere livros ou família à balada, enfim, uma lista enorme. Ameaças e perseguições também via internet já provocam suicídio entre adolescentes, e séria depressão em crianças.

A medicina e a moda incutem que estar acima do peso é feio, e, além disso, mortal. Ignoram-se diferenças físicas ditadas pela natureza, que nos deixam saudáveis e contentes mesmo que estejamos um pouco fora do esquadro ditado por ideias ou uma medicina nem sempre sensata, que dentro de pouco tempo pode mudar seus padrões - em que tão poucos cabem.

A obrigação de nos enquadrarmos num modelo aflige e frustra a grande maioria de nós. Poucos conseguem ser originais: calçamos o mesmo tênis, vestimos roupa de um mesmo tamanho, usamos o mesmo cabelo, sorrimos com os mesmos dentes, temos o mesmo ar desanimado ou delirante - porque nos drogamos seja com o que for, para aguentar.

E se nossa cabeça for um pouco mais alta, nosso corpo mais pesado, nosso desejo fugir à regra, se formos negros ou amarelos ou brancos, gordos ou magros demais, seremos quase inevitavelmente apontados: preconceito é o nome dessa perseguição.

Religiões continuam ensinando que ser homossexual é doença ou anormalidade; usar camisinha é pecado, e evitar filho (a não ser com aquele falibilíssimo método "natural"), pecado também. Nossa atitude em relação a certos preconceitos é contraproducente, como no preconceito racial. Leis que favorecem determinadas raças, por exemplo, estimulam ainda mais a diferença, o que na minha opinião ocorre com cotas especiais para afrodescendentes em escolas e universidades. Por que criar cotas para estudantes negros nas universidades, e não para os japoneses ou árabes?

Culpabilizar uma raça e vitimizar a outra não ajuda a ninguém: promove o ódio racial, assim como palavras irracionais podem promover ódio de classes. E se a ideia for baseada em dívida e suposta culpa, temos "dívidas" também com os colonizadores brancos, poloneses, italianos, alemães, chamados para cultivar nossas terras mais remotas e agrestes, e lá vergonhosamente abandonados à própria sorte, sem médico, professor, ferramentas e orientação, no meio de tribos selvagens e animais ferozes.

 
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