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Nina Horta

A secretária do imaginário

'A comida de que mais gosto é pão com manteiga, a refeição é café da manhã; sou gorda sem comer muito'

NO IMAGINÁRIO dos patrões há sempre uma secretária que sabe ler, escrever e falar ao telefone. Jovem e de barriga da perna dura para subir e descer escadas. Que entende as frases desconexas que emitimos quando queremos alguma coisa da qual esquecemos o nome.

Uma vez recebemos uma meninota simpática, de "Vogue" embaixo do braço, bilíngue. Inglês e francês. Adorava moda, fazia suas roupas que de comuns não tinham nada.

O primeiro cliente que pediu o cardápio em inglês foi para as mãos dela. Demorou um pouco, rolou, enrolou e chegou. Cheirava a Google à distância. E, de repente, parei, desentendida. "Sleeve salad". O quê? Salada de quê? De "sleeve"? Não dava para adivinhar. É claro que era uma salada de manga que o senhor Google deixara à escolha do freguês.

Pois nesta semana me aparece uma garota de óculos redondos, cabelo anelado curtinho, cara de anjo. É só olhar para ela que já entendeu. Fez um curso de cozinha na Irlanda, adora comida, sabe dos restaurantes de lá e de cá, dá risada na hora certa, toma iniciativa. Anda a pé, de carro e de metrô, tanto faz. Ótima no computador, é da geração que já nasceu dependurada em "gadgets".

Vamos ter um "brunch" nesta semana e estamos em dúvida se mantemos os "scones" pedidos. Ela fez uns em casa. Estavam absolutamente certos, mas resolvemos não fazer, pois no Brasil todos os bolinhos são melhores do que "scones", que não têm gosto de nada, só ficam gostosos com manteiga e geleia.

E o que mais a menina faz? De repente me telefonam de uma revista pedindo uma opinião e uma receita. Sento, desanimada, com muita coisa a fazer, mas vamos lá, há que agradar a imprensa, sempre, são eles que fazem com que você exista ou não. Mas aquela menininha nova... "Oi, garota, meu amor, você tem um blog, não tem? Já li. E é bom, é ótimo, você escreve bem.

Dá para contar ao repórter que a comida que mais gosto é pão com manteiga, a refeição é café da manhã, sou gorda sem comer muito, adoro um mercado e louça. A minha receita preferida é o bolinho de queijo da Vana. Está aqui nesse caderno com a letra miúda dela. Se não entender me pergunta. Você faria isso para mim?"

Ela manda, sem um erro de datilografia. A secretária pode ser uma ghost-writer, começo até a sentir um frio na barriga e um leve suor na testa.

Além de tudo, foi colega da minha neta. As duas fizeram juntas o curso de relações internacionais, curso com um leque tão grande de escolhas depois de acabado que quase todos resolvem ser cozinheiros. Lembro que o trabalho final dela foi "A Comida em Hora de Crise". O título não era bem esse, esqueci, mas o assunto era, e emprestei uns livros, que ela devolveu. Tenho na mais alta conta pessoas que devolvem livros. E ainda me mandou uns biscoitinhos amanteigados que escondi para comer sozinha.

Final da história: recebeu ontem a carta de aprovação de um curso de antropologia em Londres, e vai embora, batendo as asas sacudindo as penas. Orra, meu. Sigamos comendo salada de "sleeves".

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