São Paulo, quinta-feira, 04 de agosto de 2011

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Para desafetos, Adrià é 'anjo mau' da gastronomia

Chef Santi Santamaria chegou ao ponto de acusá-lo de envenenar o público com supostas substâncias assassinas

Contribuição de Adrià é tão profunda e intensa que ainda se passarão anos para que seja realmente assimilada


JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA

Uma unanimidade como cozinheiro mais influente da atualidade, nem por isso Ferran Adrià tem o talento aclamado por todos: muitos o consideram um "anjo mau".
A começar por seu conterrâneo Santi Santamaria (morto precocemente neste ano), o mais importante e premiado chef da Catalunha -até a ascensão de Adrià.
Autor de uma cozinha deliciosa e impecável, nos limites da tradição, Santamaria tornou-se um implacável perseguidor da vanguarda.
Ele chegou ao ponto de acusar Adrià de envenenar o público com químicas, e a exigir do governo medidas para deter supostos ataques à saúde. Seu libelo foi publicado no Brasil -está no livro "A Cozinha a Nu", da editora Senac-SP, 2009 (R$ 58).
A toda revolução, como a liderada por Adrià, corresponde uma reação conservadora. E essa reação vem ocorrendo em todo o mundo, sempre em nome da imutabilidade das tradições.
No Brasil, são notórios os comentários do "restaurateur" Rogerio Fasano (que serve com maestria sua cozinha tradicional), classificando a cozinha de vanguarda como "comida para banguelas" e feita sem fogão.
Num jantar recente, o superchef francês Alain Ducasse irritava-se com as minhas menções à nova cozinha espanhola, incomodado com a predominância que ela ganhara em relação à francesa -para ele, o El Bulli era somente um laboratório, não um restaurante.

QUESTÃO DE ESTÉTICA
O que não quer dizer que todos os defensores da tradição (em qualquer campo) se coloquem em uma atitude reacionária em relação à vanguarda artística.
O italiano Carlo Petrini (presidente do "Slow Food", que prega valores tradicionais da alimentação familiar e da pequena produção camponesa) vibrou de emoção em São Paulo ao jantar no Maní.
Petrini provou ali vários pratos preparados com técnicas da vanguarda espanhola, inclusive esferas preparadas com as supostas substâncias assassinas.
De toda maneira, a contribuição de Adrià é tão profunda e intensa -e ao mesmo tempo, tão particular e difícil de reproduzir- que ainda se passarão anos para que seja realmente assimilada.
A técnica de fazer as famosas espumas quentes, por exemplo, que ele desenvolveu em meados dos anos 90 e que é das mais simples, demorou uma década até começar a ser dominada e utilizada em escala maior.
As autoridades sanitárias não encontram evidências de que as substâncias da cozinha de vanguarda -retiradas de algas, ou reproduzindo fibras vegetais, ou gases que sequer aderem aos alimentos- produza danos.
Assim, a questão é outra, não de saúde pública, mas de estética. E nessa área o legado de Adrià já está estabelecido: além das arrojadas técnicas que inventou, é o legado de ter coragem de transgredir fronteiras e abrir mentes para a criatividade e ousadia num campo que parecia imutável.


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