Buenos Aires, de amores e tristezas

Volto a uma paixão que perdeu todo o encanto

Polícia e torcedores do River Plate se enfrentam em Buenos Aires após a segunda partida da final da Libertadores contra o Boca Juniors ter sido adiada - Alberto Raggio - 24.nov.18/Reuters

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Voltar a Buenos Aires, o que faço nesta terça-feira (27) para a cúpula do G20, é como reencontrar uma antiga paixão toda desarrumada, enfezada, triste, raivosa, sem graça. Nem adianta vir com o chavão de que o que interessa é a beleza interna. Foi exatamente esta que se perdeu. Externamente, a cidade mantém seus encantos.

A paixão por Buenos Aires foi à primeira vista. Em 1973, viajamos, eu, minha mulher e o casal Mara e Ricardo Kotscho, nossos afilhados de casamento, de ônibus de Porto Alegre para a capital argentina (sim, ainda não havíamos tido tempo de nos aburguesarmos e pegar um avião).

A Argentina fervia de entusiasmo pela volta da democracia, depois de mais uma de suas incontáveis ditaduras, a de 1966 a 1973. E também pela volta ao poder do general Juan Domingo Perón, depois de 18 anos de banimento.

O general Alejandro Agustín Lanusse, chefe da Junta Militar daquele período, descobriu o óbvio, conforme relatou no livro “Mi Testimonio”. Perón, o mito, só seria desconstruído se lhe fosse permitido voltar ao poder e fracassar (como Lanusse acreditava que seria inevitável).

Ninguém saberá se Lanusse estava ou não certo, porque Perón morreu fisicamente (em 1974) antes de fracassar e, por extensão, de o mito morrer.

Em 1973, a Argentina ainda estava bêbada de democracia, ao passo que o Brasil vivia o auge da repressão de sua ditadura. Fomos ver “Estado de Sítio", o filme do grego Costa Gavras, proibido no Brasil.

Na cena que mostra uma sessão de tortura, com a bandeira do Brasil ao fundo, o público ruge e nós quatro morremos de vergonha.

Meses depois, voltei a Buenos Aires, ainda bêbada de democracia. Foi em setembro de 1973, para tentar chegar ao Chile, que o golpe do general Pinochet fechara por terra, mar e ar. Não consegui. Voltava ao hotel, já tarde da noite, quando um grupo de estudantes da Universidade de Buenos Aires percorria a Florida, o calçadão central, aos gritos de “Allende no se suicidó/yankis lo mataron/a la puta que los parió".

Vindo do Brasil da repressão, me costurava nas paredes, esperando uma carga policial em cima da moçada. A carga nunca veio.

Esse contraste entre o silêncio imposto pelas ditaduras e as explosões que só a democracia permite tornava Buenos Aires um encanto.

Perdi a conta de quantas vezes voltei a Buenos Aires, até nela me fixar, em 1981, como correspondente desta Folha. A Argentina já tinha recaído na ditadura. Foi em 24 de março de 1976 e eu estava na praça de Maio, diante da Casa Rosada, quando partiu o helicóptero que levava a presidente María Estela Martínez de Perón para a prisão, deposta que fora.

Contei as pessoas que respaldavam a presidente naquela fria noite de março, na praça histórica: eram pouco mais de 20. Na manhã seguinte, havia mais gente em frente às vitrines das lojas de eletrodomésticos cujas TVs mostravam Polônia e Argentina do que prestando atenção ao noticiário sobre o golpe militar.

A democracia é frágil e, se não for cuidada com empenho e carinho, fenece na maior solidão.

Na Argentina, então, mais morreu que viveu. Tanto que foram necessários 61 anos de intervalo para que se repetisse a cena de um presidente civil legitimamente eleito passar a faixa presidencial para outro civil com a mesma legitimidade. Foi em 1989, quando Raúl Alfonsín entregou faixa e bastão para Carlos Menem.

Tantas foram as posses que até memorizei o juramento: “Juro desempeñar con lealtad y patriotismo el cargo de presidente de la Nación y observar y hacer observar fielmente la Constitución de la Nación Argentina. Si así no lo hiciere, que Dios y la Pátria me lo demanden".

Essa mistura de Deus e Pátria —que agora estamos vendo de perto— é assustadora. Deus não deve ter tido tempo para cuidar da Argentina, tanto que as sucessivas interrupções do jogo democrático acabaram empurrando o país cada vez mais para o buraco. Não é preciso ser PhD em porcaria nenhuma para intuir que o progresso depende de segurança jurídica e institucional.

No fim de 1983, Delfim Netto, o Paulo Guedes da época, promoveu uma maxidesvalorização no Brasil, e a Folha não podia mais arcar com os custos de correspondentes. Chamou-me de volta, mas ainda tive tempo de acompanhar outro porre democrático. Foi a eleição que marcou o fim da ditadura. Ganhou Raúl Alfonsín, da tradicional União Cívica Radical, hoje um bagaço.

Foi uma festa no bairro em que morávamos, a Recoleta, reduto da classe média e, por extensão, do radicalismo. Os filhos entraram na festa. Da sacada do prédio, jogavam serpentinas e recebiam outras de volta.

Estávamos tão em casa que, na primeira chance de retornar a Buenos Aires, logo depois, pedi ao taxista que, em vez de me deixar no hotel, me largasse na célebre Corrientes (nem precisava ser em Corrientes, tres, cuatro, ocho, segundo piso, ascensor, do tango célebre). Queria respirar mi Buenos Aires querido.

Agora, 35 anos depois do fim da mais recente ditadura, vou direto para o hotel. Não há festa na Argentina. Ao contrário. Um país que não consegue nem realizar uma final de campeonato (no caso, a da Libertadores) não é civilizado.

Ao voltar à cidade que já foi minha, não consigo discordar do filósofo e doutor em Ciências Socias Nicolás José Isola que escreveu para o La Nación, a propósito deste recente estropício : “A Argentina não desperdiça nenhuma oportunidade de mostrar-se como um país incivilizado".

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