Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Um país primitivo prestes a regredir mais

Bolsonaro deu via livre a todos os demônios

Protesto contra Jair Bolsonaro, candidato à Presidência pelo PSL, em São Paulo - Nelson Almeida - 6.out.18/AFP

Tenho enorme resistência a equiparar determinados grupos e líderes políticos ao fascismo e ao nazismo. Foram modelos tão horrorosos que custa a crer que os seres humanos não tenham aprendido nada com os horrores produzidos.

Feita essa ressalva, não há como não pensar em Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda nazista, ao ler o texto da extraordinária repórter que é Patrícia Campos Mello sobre a máquina de ”fake news” montada por empresários admiradores de Jair Bolsonaro para atacar Fernando Haddad.

A Goebbels se atribui a frase "uma mentira mil vezes repetida vira verdade".

A Folha, aliás, usou essa frase em uma propaganda anos atrás para defender o jornalismo sério como antídoto contra a transformação de mentiras em verdades.

Pena que as redes sociais tenham atropelado o antídoto.

Os admiradores de Bolsonaro superaram Goebbels: em vez de "uma mentira" dispararam milhares delas.

Alguma surpresa? Não para mim. Se Bolsonaro já se exibiu em vídeo sugerindo metralhar os petistas, nada mais natural —e execrável— que seus seguidores metralhem o petista Haddad pelas redes sociais.

É apenas o mais recente episódio do estrago que Bolsonaro já fez, seja ou não eleito. Repito: se Bolsonaro é ou não uma ameaça à democracia só se saberá mais adiante. Mas, desde já, está provado que ele despertou os demônios que habitam parte significativa do eleitorado, levando-a a votar em um candidato que faz apologia da tortura e da ditadura.

Convenhamos que tortura e ditadura são irmãs siamesas. Não conheço uma, de direita ou de esquerda, que não utilize a tortura como arma de submissão de dissidentes ou de simples críticos.

Ao apoiarem ou, no mínimo, serem lenientes com quem elogia uma prática bárbara, os eleitores de Bolsonaro estão levando o Brasil a retroceder muitos degraus em um processo civilizatório que nunca se conclui neste país.

A catarata de ofensas e ameaças dirigidas contra Patrícia, após a publicação de sua reportagem, é a versão virtual da ”Kristallnacht", a noite dos cristais, o ataque aos judeus na Alemanha nazista em novembro de 1938, efetuado pelos paramilitares das sinistras SA e, atenção, também por civis alemães.

Por enquanto, é uma infâmia virtual, mas demônios liberados e estimulados não voltam para a garrafa.

A propósito dos demônios que Bolsonaro libertou, Brian Winter, editor-chefe da publicação Americas Quarterly, prevê um morticínio nos próximos meses e explica que essa previsão ”se deve à prioridade política número um de Bolsonaro: relaxar as leis e regras para as forças de segurança, permitindo que atirem primeiro e façam perguntas depois".

Winter lembra que a licença para matar será ainda mais ampla do que é hoje, quando ”a polícia já mata 5 mil pessoas por ano".

No ano passado, 63.880 brasileiros morreram de forma violenta, um recorde que coloca o Brasil nos primeiros lugares no ranking de homicídios por 100 mil habitantes, como é arquiconhecido.

Alguém acha, honestamente, que aumentar esse número já sinistro trará o país para mais perto da civilização? Desgraçadamente, há muitíssima gente que acha sim, que aceita a tese de que bandido bom é bandido morto.

Até entendo a angústia de boa parte desse público, mas não se justifica abrir a porta da violência para enfrentar a violência. Basta olhar para o México, que colocou o Exército para combater a criminalidade, no governo Felipe Calderón, espalhou uma pilha impressionante de cadáveres e, não obstante, os criminosos ficaram mais fortes.

O que torna ainda mais grave esse retrocesso civilizatório à vista é o fato de que o Brasil é um país primitivo. É só lembrar as humilhantes posições que ocupa em rankings mundiais dos mais diversos assuntos: é dos últimos na lista da Transparência Internacional, que mede a percepção de corrupção; é um desastre absoluto nos exames Pisa, que medem a qualidade da educação; é o 72º no ranking de competitividade do Fórum Econômico Mundial, entre 140 países; é sempre uma vergonha sua colocação no Índice de Desenvolvimento Humano; é um dos dez países de desigualdade mais cruel.

Parece lógico deduzir que esses fracassos contínuos há anos ou talvez séculos tenham levado a maioria a buscar uma solução supostamente mágica, na figura de um político há 27 anos no Congresso mas que se faz passar por um outsider.

É como escreveu Monica de Bolle (Johns Hopkins University), que já citei aqui: da série de fatores que contribuem para o apoio a Bolsonaro e que ainda serão analisados nos próximos meses, destaca-se o fato de ”o eleitorado estar completamente farto [fed up, no texto em inglês] com o chamado establishment".

Já houve pelo menos outro momento de busca por uma mágica: os brasileiros elegeram Collor como se fosse o caçador de marajás. Não passava de uma grosseira fraude. Deu no que deu.

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