Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi
Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Democracia capenga elegeu Bolsonaro

Ele nem precisa destrui-la; ela já está se imolando

A campanha eleitoral no Brasil foi marcada pela constante suposição de uma fatia significativa dos analistas e do eleitorado de que uma vitória de Jair Bolsonaro seria uma ameaça para a democracia.

Pois a mais recente edição do Latinobarômetro —essa competente medição dos humores dos latino-americanos— sugere que vale o raciocínio inverso: Bolsonaro ganhou justamente porque a democracia já não anda nada bem das pernas.

Não só no Brasil mas em todo o subcontinente. Nelson de Sá, com a competência habitual, já fez um resumo do levantamento, mas acho que ainda há ângulos a explorar.

A democracia continua sendo o sistema preferido pela maioria, na qual me incluo. O problema, portanto, não está com o modelo em si mas com a maneira como está funcionando: para quase três de cada quatro pesquisados pelo Latinobarômetro funciona mal. É o que relata a revista The Economist, que tem a exclusividade mundial na divulgação da pesquisa.

A insatisfação com o funcionamento da democracia subiu de 51%, em 2009, para 71% em 2018. A satisfação, como é óbvio, caiu, de 44% para 24%, o menor número registrado nas duas décadas de pesquisas do gênero.

No Brasil, é pior ainda: ao contrário do que constatou o Datafolha no mês passado (69% de preferência pela democracia), no Latinobarômetro, o modelo é o preferido de apenas 30%. E só 10% estão satisfeitos com o funcionamento da democracia.

É o pior registro entre os 18 países pesquisados. Alguma surpresa com a vitória de um candidato que faz a defesa da ditadura e a apologia da tortura, instrumento sempre associado ao autoritarismo?

O levantamento do instituto sediado no Chile mostra que os três principais fatores de insatisfação com a democracia são exatamente os três eixos em que Bolsonaro baseou a sua campanha nas redes sociais: economia, criminalidade e corrupção.

Não deve ser puro acaso o fato de que os dois superministros já indicados, Paulo Guedes (Economia) e Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública), estão encarregados exatamente de atender à essas preocupações.

Aqui, pode até ocorrer uma ironia: se o novo governo conseguir ressuscitar a economia comatosa e estabelecer um nível relativamente civilizado de segurança pública é razoável supor que o presidente com instintos autoritários acabará por recuperar o prestígio da democracia.

Afinal, terá sido pelo democrático instrumento chamado eleição que se escolheu um presidente que, nessa hipótese, encaminharia pelo menos um princípio de solução para os problemas que mais incomodam o público e, por extensão, mais desgastam a democracia.

Mas, atenção, a insatisfação com a democracia só poderá ser plenamente restaurada quando o público tiver a percepção de que o governo age para o bem de todos.

O Latinobarômetro anterior (2017) perguntou se o governo atuava em benefício de apenas alguns grupos poderosos ou para o bem de todos. Só 3% dos brasileiros apontaram esta segunda hipótese, o menor índice entre todos os países pesquisados. A média latino-americana, já baixa, era sete vezes maior (21%).

Parece pouco provável que essa percepção mude substancialmente com o novo governo, mais empenhado em fazer restrições a direitos de minorias (negros, índios, o pessoal LGBT) e em ameaçar o jornalismo independente.

O grande problema —que provoca até calafrios— é imaginar o que acontecerá com a democracia se nem mesmo a escolha de um candidato pouco amigo dela resolver os problemas que desmoralizaram o sistema.

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