Sobre o vídeo dos torcedores

Ou aprendemos a ser mais tolerantes ou estaremos condenados a viver numa perpétua inquisição

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Sem entrar no mérito de se o vídeo dos torcedores brasileiros com a mulher russa gritando obscenidades em português foi uma grosseria sem maior importância ou uma agressão a todas as mulheres do planeta e causador de feminicídios —assunto que tem dividido inclusive a opinião feminina—, quero olhar para o mecanismo de perseguição e punição que ele colocou em andamento.

Ele envolveu não apenas usuários de redes sociais, como também a mídia tradicional. Nos intervalos do futebol na Globo, anunciava-se a caçada pelos integrantes do vídeo como se se estivesse atrás de um grupo terrorista. 

Como resultado, os participantes podem ser processados criminalmente na Rússia, perder o emprego no Brasil, ter sua OAB cassada (no caso do advogado), ter sua reputação destruída e virar párias sociais. Correm ainda o risco de uma recepção calorosa por justiceiros no aeroporto.

São as consequências de seu ato; mas será que essas consequências são proporcionais, e será que podemos esperar algum tipo de imparcialidade e isonomia no tribunal da opinião pública? Alguém sequer se importa com isso?

A lógica da perseguição é a mesma em todos os tempos, ainda que seu objeto mude. O ato pecaminoso é tomado não como um deslize, mas como a revelação de um caráter podre, substancialmente pior do que o daqueles que o condenam.

É a essência maléfica daquele ser culpado (se herege, pervertido ou misógino, tanto faz) que está sendo julgada e banida da sociedade. Ele personifica o mal, e portanto inocenta aqueles que o condenam, participantes de uma vingança redentora.

A natureza humana é sempre a mesma. A novidade é a tecnologia e as redes sociais, que fundem o público e o privado. Somos inexperientes para navegar esse mundo novo. A página pessoal no Facebook parece um ambiente privado, frequentado apenas por amigos, mas basta um post mais polêmico para que ela seja devassada por legiões de desconhecidos.

Em outros casos, até existe uma expectativa razoável de privacidade (por exemplo, num grupo de WhatsApp), mas ela pode ser quebrada com um clique mal-intencionado. 

Frame de vídeo em que brasileiros insultam estrangeira - Reprodução

Ao mesmo tempo, todos querem se expor e ser admirados. A hipocrisia que condena ferozmente nos outros aquilo que desculpa em si passa a ser uma virtude obrigatória.

Em grupos exclusivamente masculinos lê-se e ouve-se muita coisa que destoa da solene indignação com que o vídeo dos torcedores foi tratado, muitas vezes pelas mesmas pessoas, em uma esfera mais pública. Esse espaço reservado de cumplicidade durará pouco.

Mesmo offline, a privacidade tende a acabar. Todo mundo anda armado com câmera e gravador na mão, e os dedos coçam para capturar o próximo motivo de indignação coletiva. Você já pensou e provavelmente já externou comentários e praticou brincadeiras piores do que as dos torcedores do vídeo.

É mera questão de sorte não ter sido filmado, printado ou compartilhado por uma boa alma sedenta de justiça. É a sorte, e não o caráter, que te diferencia do sujeito do vídeo.

A destruição do bode expiatório é a reação contra o emaranhado de pulsões inconfessáveis que existe dentro de cada um, e que volta e meia se manifesta.

Com a redução da esfera privada, ou aprendemos a ser mais tolerantes com as falhas, imperfeições e deslizes alheios, aos quais também estamos sujeitos, ou estaremos condenados a viver numa perpétua inquisição de todos contra todos.

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