Descrição de chapéu

Licenças para matar

Como disse Rui Barbosa, abolida a pena de morte, mata-se agora sem pena

O ex-presidente da República Ernesto Geisel - 1º.out.76/Folhapress

Conteúdo restrito a assinantes e cadastrados Você atingiu o limite de
por mês.

Tenha acesso ilimitado: Assine ou Já é assinante? Faça login

Os “meios empregados” não são dos mais “confessáveis”, mas “surtiram excelente efeito”. Nem sempre é “possível proceder de modo irrepreensível perante a lei”. As frases recolhidas pelo historiador Flavio dos Santos Gomes, de despacho de ministro da Justiça (1877), sintetizam a tradição brasileira de abuso de poder.

Era fundamental “suprimir esse valhacouto de ladrões” —os quilombos. “Há casos policiais em que os fins justificam os meios”. É assim desde a colônia.

O general Ernesto Geisel (1974-79) não é o único presidente com uma perturbadora história de licença para matar.

Geisel deu seguimento à política de extermínio de banidos, terroristas e guerrilheiros instituída no governo de seu antecessor, general Emílio Garrastazu Médici (1969-74). Geisel foi sucedido pelo general João Batista Figueiredo (1979-85), participante da roda de assassinatos noticiada pelo memorando da CIA.

Além de reprimir a vadiagem nas cidades, a República enfrentaria rebeliões e batalhas. Rui Barbosa menciona o paradoxo em 1913: “Abolida a pena de morte, mata-se agora sem pena”.

O segundo presidente do Brasil, marechal Floriano Peixoto (1891-94), tem na biografia texto de telegrama supostamente assinado por Antônio Moreira César, lido no Senado em 1896: “Romualdo, Caldeira, Freitas e outros foram fuzilados segundo vossas ordens”.

Para defensores do “Marechal de Ferro”, é estúpido imaginar o envio de mensagem de tal teor. Mas Moreira César fez o “ajuste de contas” com Desterro (depois Florianópolis), capital de Santa Catarina, para onde convergiam movimentos da Revolução Federalista e da Revolta da Armada, implantando regime de terror e fuzilamentos sumários.

Além de investir na polícia política, Getúlio Vargas (1930-45 e 1950-54) reinstituiria a pena de morte para subversivos e homicidas fúteis ou perversos (1938), a rigor nunca aplicada.

O mais longevo governante do período republicano, Vargas havia decretado a expulsão da mulher judia e grávida do líder comunista Luís Carlos Prestes, Olga Benário, entregando-a para a Alemanha de Hitler. A morte da militante (1942) na câmara de gás, em campo de concentração nazista, já situa o Estado Novo e seu chefe no incômodo território dos crimes contra a humanidade.

Diminui a autoestima saber que documentos capazes de explicar lacunas históricas do Brasil permanecem secretos por normas de sigilo dos EUA e que, aqui, a documentação militar desapareceu.

O que dizem os dois parágrafos com tarja preta do memorando recebido pelo secretário de Estado Henry Kissinger? Outras fontes de informação esclarecem o contexto do relato produzido pela CIA?

São desconcertantes as estatísticas da letalidade policial no Brasil, assim como são assombrosos os números de homicídio, estupro e assalto.

A licença para matar está entranhada na cultura policial, particularmente da Polícia Militar, e também na cultura de delinquentes. O círculo vicioso parece infinito.

A decisão do governador tampão de São Paulo, Márcio França, de “homenagear” a cabo da PM que matou ladrão armado com três disparos diante de uma escola é imprópria, leviana e oportunista.

Se a soldado agiu em legítima defesa, se a reação ao assalto não expôs outras mães e crianças a riscos adicionais, isso deve ser declarado por autoridade judicial. Violência gera traumas. O policial que mata —o inocente, inclusive— deve permanecer nas ruas como se nada tivesse acontecido?

O governador é candidato, mas o eleitor não o conhece. A oportunidade surge. O discurso da linha dura não tem dono. As “enquetes” encorajam.

Mais impulso político, mais licença para matar.

lfcarvalhofilho@uol.com.br

Relacionadas