Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, é autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Luís Francisco Carvalho Filho
Descrição de chapéu

Lei não é para valer

Atroz, o sistema penitenciário brasileiro é fruto do arbítrio

Instalações do Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), em Manaus, após rebelião que resultou na morte de 56 presos em janeiro de 2017
Instalações do Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), em Manaus, após rebelião que resultou na morte de 56 presos em janeiro de 2017 - Marlene Bergamo - 14.jan.17/ Folhapress

O uso da expressão “para inglês ver”, indicativa de que a norma não é para valer, tem como origem, segundo filólogos e historiadores, lei editada em 1831 contra o tráfico negreiro. Pressionado pelos ingleses, o Brasil declarava livres os escravos ilegalmente importados, mas autoridades locais encontravam meios de preservar o cativeiro.

A Lei de Execuções Penais (LEP) também é para inglês ver.

Editada em 1984, poderia ser exibida como legado humanista do regime militar. A exposição de motivos, assinada pelo ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, falava em “esperança” e em “generosa e fecunda perspectiva” decorrente de esforços voltados para “aprimoramento da pessoa humana” e “progresso espiritual da comunidade”.

Três décadas depois, o sistema penitenciário é atroz.

Além de efetivar as sentenças criminais, a LEP promete integração social do condenado a partir de parâmetros científicos (programa de individualização da pena, exame da personalidade, exame criminológico, separação de presos), estabelecendo, “com clareza e precisão”, deveres e direitos, sanções e recompensas, apoio ao egresso.

Se a conduta do preso deve ser oposta a “movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem e à disciplina”, a lei assegura “contato com o mundo exterior” e atividades intelectuais e artísticas.

O condenado, diz o legislador, será alojado em cela individual e salubre (aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana), com pelo menos seis metros quadrados de área. Na vida real, sob o olhar cínico de governantes e juízes, mais de 700 mil presos estão amontoados em depósitos que fedem, torturam, enlouquecem e matam.

O texto assegura assistência material, jurídica, educacional e religiosa e trabalho para todos —de acordo com as aptidões e capacidades de cada um. A integridade física e moral é intocável. Cria instalações destinadas a estágio de estudantes universitários nas penitenciárias. Conselhos da comunidade têm a incumbência de visitar mensalmente os presídios e entrevistar detentos. ​

A lei em “vigor” separa o condenado do provisório, o reincidente do primário. Segrega autores de crimes violentos. Aloja maiores de 60 anos em locais especiais. Mas a realidade é cruel: estão todos misturados e sob o comando de facções criminosas.

Se uma pequena parcela de condenados, como mostrou reportagem da Folha, cumpre pena em prisões “humanizadas” (48 estabelecimentos com no máximo 200 internos por unidade), sem policiamento e armas e reduzido índice de reincidência, a maioria permanece em regime de miséria e brutalidade institucional que só se compara ao da escravidão.

Os remendos modernizantes da lei também são ineficazes. Ou alguém acredita que existe no Brasil banco de dados sigiloso com identificação do perfil genético dos condenados por crimes violentos e hediondos?

O próprio Supremo Tribunal Federal trata a Lei de Execuções como traste jurídico.

O sistema de cumprimento de pena é progressivo (do fechado para o semiaberto, do semiaberto para o aberto). A lerdeza da Justiça invariavelmente adia a progressão da pena dos “pobres”. Agora, o STF cria para réus do mensalão e da Lava Jato empecilho não previsto em lei: quer antes o pagamento da multa e a reparação do dano, inviáveis quando os bens estão indisponíveis, como aponta outra reportagem da Folha.

A sentença criminal é título executivo: a lei manda penhorar e executar o devedor em caso de não pagamento. Prisão por dívida é herança grotesca: a Constituição proíbe, mas o STF resolveu autorizar. Maltratam-se, assim, os presos “ricos”. A plateia gosta.

lfcarvalhofilho@uol.com.br

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.