Descrição de chapéu

No umbigo da Washingtonlatria

Nada contra narcisistas, desde que tenham o que contar e o façam com estilo. Sem ambos, Olivetto recorre ao autoelogio

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O publicitário Washington Olivetto, fotografado em Londres - Candice Japiassu - 19.jan.18/Folhapress

Na penúltima frase de seu livro, Washington Olivetto deseja que quem o leu "viva mais de 100 anos". Como se trata de uma autobiografia, gênero egocêntrico por definição, o vaticínio altruísta soa simpático. Pena que se descubra em seguida que o publicitário está dando uma de engraçadinho.

Porque na derradeira frase do livro, a lapidar, o bom augúrio vira praga: "que a sua última leitura na vida seja de algo que eu tenha acabado de escrever". Se a alternativa for ler de novo "Direto de Washington" (Estação Brasil, 398 págs.), viver 99 anos está mais do que bom.

"Fui escrevendo de acordo com o que fui lembrando", diz Olivetto na abertura. Imodesto, lembrou-se de dizer que é um "pop star", um "grande publicitário", o "mais premiado do país". Nada contra o narcisismo. Desde que Narciso tenha o que contar e o faça com estilo.

Como não tem uma coisa nem outra, ele recorre ao autoelogio. Fez anúncios "memoráveis", "clássicos", "históricos", "antológicos", os melhores da "história da publicidade mundial". Excede-se em "excelência criativa" e teve a "agência mais badalada do país".

Ele não se enaltece sozinho. Fulana "me adorava". Beltrano exortou-lhe a "coragem, personalidade e inteligência". Sicrano escreveu três páginas de louvaminhas ao publicitário "brincalhão, apaixonado e criativo" --e Olivetto as transcreve na íntegra, adjetivo por adjetivo. Na Washingtonlatria, compostura é pecado.

"Direto de Washington" é como um sujeito sem simancol, que puxa sua manga e teima em provar, por A+ B, que é esperto. Olivetto, por exemplo, escreve uma enésima tolice, compara-se a um gênio do humor e quase cobra royalties: "a frase é divertida; parece do Groucho Marx, mas é minha".

Se o assunto é relevante, recorre à autoridade incompetente de sempre: ele mesmo. Assim, ao defender anúncios com crianças, sentencia: "Sei disso porque conheço bem o assunto". Conhece como? Ele explica que se casou com uma "arte-educadora" --seja lá o que for isso.

Não dá nem para imaginar o que a tal arte-educação tem a ver com publicidade infantil porque Olivetto já mudou de assunto. É igualmente esquivo ao falar de álcool. Não vê nada demais em ter propagandeado bebidas, e se cala sobre os males que causou na saúde alheia.

Quanto ao cigarro, acha que suas campanhas eram "bem-feitas do ponto de vista técnico" e "discutíveis do ponto de vista ético". Pouco se lhe dá ter ajudado a viciar milhões de pessoas. Tanto que não pede desculpas a elas. A Washingtonlatria não admite arrependimento.

Já o cinismo está liberado. Na ditadura, Olivetto fez um anúncio para demonstrar que era bobagem só contratar gente com menos de 40 anos. Pôs no ar fotos de quarentões ilustres: Einstein, Picasso, Sinatra e --tchan-tchan-tchan-tchan!-- o general Geisel.

Sua desculpa esfarrapada: "mesmo não tendo a estrutura intelectual dos outros protagonistas", Geisel "presidia o país onde o preconceito" se dava. Logo, "não podia ser esquecido". Em matéria de puxa-saquismo, o anúncio é, agora com razão, memorável, histórico, antológico etc.

Numa campanha de máquinas de escrever, repetiu a palavra "reclamar" diversas vezes. Para ele, era "uma mensagem política, um pequeno protesto contra a censura". Como o protesto não era pequeno, e sim invisível, a ditadura não se deu conta dele.

Além de vender coisas úteis, inúteis ou daninhas, Olivetto ajudou a forjar a imagem de um Brasil brejeiro. Tal país entrou em parafuso, se é que existiu, e a sua publicidade, também. Seria proveitoso se analisasse o fracasso, duplo e interligado.

Ocorre que, na Washingtonlatria, fracassar é heresia. Até porque o bezerro de ouro amealhou uma montanha de prata. O hipercamelô então vendeu sua banca e foi para Londres. Mas continua na propaganda da qual é mestre: a do seu umbigo.

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