A máquina do mundo na mina vazia

José Miguel Wisnik ausculta o sono rancoroso da mercadoria em Drummond

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A arte de Carlos Drummond de Andrade é a que mais fundo foi na definição do ser brasileiro no século 20. Vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-la: nela estão as paixões, os impulsos e os tormentos daquele que teve ouro, teve gado, teve fazendas, e virou funcionário público.

Essa riqueza sobrante a toda pérola, esse nexo primeiro e singular, essa total explicação da vida é um repto para a crítica literária. Como dar conta dessa ciência sublime e formidável, mas hermética? Mesmo afetando dar-se ou se rendendo, a cada nova análise sua obra mais se retraía.

Agora chegou a vez de José Miguel Wisnik, ensaísta, músico e admirador do poeta, sobre o qual dá aulas na USP há 45 anos. Olha, repara, ausculta: "Maquinação do Mundo - Drummond e a Mineração" (Companhia das Letras, 304 págs.) é um assombro.

De há muito está posta, nas universidades, a primazia da obra sobre a biografia do autor. A vida não elucida os versos nem a poesia é biografia. O poema é fruto e germe da época, da língua, do mundo que se dá a ver na sua forma e conteúdos.

Pois "Maquinação do Mundo" nasceu de um impacto biográfico. Mais estranho ainda: o lance não foi vivido por Drummond, e sim por Wisnik, numa visita casual ao brejo das almas onde nasceu o poeta, Itabira.

"Algumas horas em Itabira produziram revelações sobre a obra do poeta que nunca tinham me ocorrido", disse ele a Marcos Augusto Gonçalves, na Folha. Wisnik viu no interior de Minas o vazio cavado pela máquina do mundo.

"A Máquina do Mundo" é um poema de Drummond inspirado n'"A Divina Comédia" (estrofes de três versos decassílabos; o diálogo com Virgílio) e n'"Os Lusíadas" (a verve altiva; Vasco da Gama vê Deus). Enquanto Dante e Camões são translúcidos, Drummond é fosco, pétreo. Sua "Máquina" mal se entreabre, mais oculta que revela.

Wisnik analisa o poema verso a verso. Escora-se sobretudo na interpretação de Alcides Villaça, mas desentranha do poema o ferro que viu em Itabira. Ou antes, o ferro que não viu: o pico do Cauê, presença assídua na poesia de Drummond, que ele via pela janela na infância, não existe mais. Foi extirpado pela Companhia Vale do Rio Doce.

Matéria-prima primordial no século passado, o ferro fez as mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora. Aquilo que Wisnik observou em Minas foi a máquina da mercadoria. O claro enigma do Capital. O mundo em miniatura na modorrenta Itabira.

Nessa chave, ganham outro sentido versos arquiconhecidos como: "Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!"

A dor é literal, pessoal e social. Não é só o poeta que perdeu uma parte de si no corpo do mundo. Dos milhões de toneladas de ferro alienadas às metrópoles capitalistas, não restou uma lasca em Itabira. Só resíduos, dejetos, crateras. A Vale nem transferiu sua sede do Rio para lá, como se comprometeu na sua fundação.

Além de analisar os poemas nos quais Drummond se refere à mineração, Wisnik repassou os seus escritos em prosa, inclusive em crônicas jamais recolhidas a livros. Descobriu então que o manso burocrata travou na imprensa uma guerra contra a Vale.

Irritou tanto a companhia que, em 1970, ela estampou um anúncio contra o poeta. Ele dizia: "Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro". Drummond guardou-o e continuou sua obra. A Vale também. Sua última obra foi a catástrofe no rio Doce.

A justaposição da poesia drummondiana à destruição perpetrada pela Samarco surge como uma decorrência da crítica de Wisnik. Nem sempre ela se dá de maneira fluida em "Maquinação do Mundo". No afã de buscar sentido em tudo, um par de vezes Wisnik força aproximações e juízos.

Seu estilo frondoso, em contraste com a secura de Drummond, bem como a erudição, que se espalha em citações várias e conflitantes, agrava essa percepção. Ela ocorre no ataque desmesurado a Sergio Miceli e Roberto Said, que investigaram as relações do poeta com o Estado Novo.

O mesmo se dá na ode a "Boitempo". Wisnik chega a dizer que ele é um exemplo do "estilo tardio" teorizado por Adorno. Mas resta que "Boitempo" tem forma lassa. Está bem longe do que Drummond fez até "Lição de Coisas". São senões marginais.

O que conta é trazer Drummond para aqui e agora. "Maquinação do Mundo" situa a sua poesia na alma da máquina que encadeia capitalismo, exploração neocolonial, destruição da natureza e morte --máquina na qual a única liberdade é a fantasia literária. Se bem que "A Rosa do Povo" entreveja sua superação.

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