Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Dos anais franco-eslovenos

Ocorrências da cultura e da natureza entre Paris e Liubliana

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Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

"Britannicus". O público vai de gravata ou vestido de festa à Comédie-Française. O diretor não mexeu uma vírgula na peça de Racine. O clássico do século 17 indaga: como nasce o Mal? Quando foi que o imperador competente e bom virou Nero? A nitidez dos alexandrinos faz com que a peça pulse, pense o presente. É um prodígio, ainda que museu.

Formação literária. Pergunte a qualquer francês qual é o grande escritor nacional e ele vos dirá: Victor Hugo. Como assim, "Os Miseráveis"? Não, não, explicam: a poesia, e recitam de cor versos de "La Légende des Siècles". Racine é melhor que Shakespeare? Eles acham que sim. Mas preferem Victor Hugo.

Delacroix. Meio milhão de pessoas foi à megamostra do pintor no Louvre. Mas não tem jeito: as dezenas de telas não chegam aos pés de "A Liberdade Guiando o Povo". Passado o impacto da Revolução de 1830, Delacroix tornou-se um artista em busca de assunto. Um bom pintor. Um Victor Hugo.

Museu Picasso. Está com uma exposição sobre "Guernica". O artista tentou repetir o gesto com "Massacre na Coreia", de 1951. Parodiou Goya e Manet e fez um pastiche com expressionismo e cubismo. O engajamento transmutou-se numa pintura frouxa, a serviço da estética stalinista na Guerra Fria. O entusiasmo de Picasso estava nos retratos de Dora Maar.

"Mulher em Guerra". É um filme islandês sobre temas na moda, do feminismo ao ambientalismo. Com arco e flecha, uma candidata a mãe solteira ataca uma grande empresa poluidora. Como há música, comédia e a esparsa paisagem islandesa, vê-se o filme com interesse. Passados alguns dias, o que resta na memória é a inanidade do drama.

"Um Ano Polar". Esse é dinamarquês, se passa na Groenlândia e faz com que gente real represente a si mesma. O filme melhora porque o lugar é feio, os nativos não têm charme e os dramas do protagonista são insignificantes. Aí se dá a superação —não no sentido hegeliano, mas de autoajuda— e o filme tem um final fofo. Pinta até um urso polar.

Villa Savoye. Le Corbusier projetou há 90 anos esse marco do modernismo. Disse que era uma "máquina de morar" feita com base na razão. Nem tanto: ela é uma máquina de ostentar riqueza encomendada por um milionário. O que não a impede de ser deslumbrante, de parecer ter sido construída ontem.

"Hedy Lamarr". Ninguém se lembra de Hedy Lamarr de Dalila e Victor Mature de Sansão. Pelo documentário, fica-se sabendo que ela era austríaca, posou nua na adolescência, fugiu do nazismo, casou seis vezes, viciou-se em drogas e inventou um sistema de códigos que antecipou o wi-fi. Nasce um ícone feminista.

Liubliana. Com 260 mil almas, é a capital de um país com a área de Sergipe. A Eslovênia tem a maior cobertura verde da Europa: 58% do território. Os panoramas se assemelham a sonhos infantis. O igualitarismo faz com que não se veja milionários nem mendigos. Um bom lugar para fugir do turismo e ser turista.

Lonely Planet. Reza a primeira frase do guia turístico: "Ninguém é verdadeiramente esloveno se não subir o Monte Triglav e lá levar umas palmadas na bunda". Resistir à Eslovênia, quem há de?

Castelo de Predjama. Encravado numa rocha, é gélido até no verão. O castelo resistiu ao assalto dos austríacos, no século 15, porque o Robin Hood esloveno, Erasmo Lueger, os bombardeou com milhares de cerejas. Aí Lueger precisou ir ao banheiro, numa casinha fora do castelo. Os austríacos o mataram ali. Cerejas e heroísmo, fezes e morte.

Robanov Kot. A água puríssima, de degelo alpino, a ausência de poluição, a tradição culinária e a seleção genética operaram um milagre: naquele vale não há médicos porque as pessoas nunca ficam doentes. Morre-se de velhice. Ou despencando de despenhadeiros.

Lago Bled. É do tamanho da Lagoa Rodrigo de Freitas. A água é turqueso-transparente. Há uma ilhota no meio com uma igreja onde se celebrava um casamento. Nadar ali é nirvana. Remar, não.

Rogaška Slatina. Num corredor do Grande Hotel, ouve-se uma camareira cantarolando uma musiquinha delicada ao limpar um quarto. Na Eslovênia as camareiras cantam enquanto trabalham. Convém não generalizar: aquela cantava. A melodia era linda.

Caverna de Postojna. O tempo entalhou esse indescritível dédalo de estalactites e estalagmites, de galerias, arroios, túneis. Ou melhor, a cultura pode, sim, descrever a natureza. Auden: "Quando imagino um amor sem erro ou o mundo que virá, o que escuto é o sussurro de regatos subterrâneos; o que vejo é uma paisagem de pedra calcária".

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