Descrição de chapéu

O tamanho da língua é desmedido

Série da Folha sobre o português faz justiça a um tema cercado de incompreensão

Imagem do especial O Tamanho da Língua - Gabriel Cabral/Folhapress
 

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O projeto O Tamanho da Língua (folha.com/otamanhodalingua), que a Folha lançou na última segunda (23), é emocionante pelo reconhecimento do protagonismo do idioma em nossas vidas. A relevância jornalística do tema pode parecer óbvia. A julgar pela minha experiência, a maioria das pessoas não pensa assim.

A exceção são as questões normativas mais duras, aquilo que a autoridade gramatical de gravata determina como certo ou errado. Tratando-se de informação que cai em prova, e portanto pode ter impacto imediato na vida do cidadão, faz mais de 20 anos que essas questões viraram tema de colunas de grande leitura na imprensa brasileira.

Se levou a língua a ser discutida por um maior número de pessoas, o sucesso midiático da abordagem normativa delimitou um círculo estreito fora do qual o debate permaneceu restrito a uns gatos pingados. Curiosamente, a parte deixada de fora era a mais divertida e apaixonante.

A distorção pode ter origem em nosso modelo escolar de decoreba e pegadinhas. Quem sabe vem de mais longe. O fato é que esbarrei diversas vezes em porta-vozes enfáticos de uma crença obscurantista: a de que dispensar a essas questões o olhar reflexivo do crítico cultural é não só inútil mas, de alguma forma, ofensivo. Uma ultrajante perda de tempo. 

“Você não tem nada melhor para fazer?”, ouvi muitas vezes ao longo desses 18 anos em que venho escrevendo na imprensa sobre palavras, expressões, a norma culta em transformação, as regras e o que está por trás delas, com um ponto de vista de escritor louco pela língua em seu sentido amplo e que vê nacos de razão tanto no realismo linguístico quanto no romantismo conservador.

No começo eu ficava perplexo. Como era possível que um espetáculo tão animado, tão cheio de imaginação e peripécias quanto o de um idioma em permanente (re)invenção fosse considerado indigno de uma resenha? Não percebiam os críticos que, para expressar seu desprezo à língua, recorriam a ela? Escapava-lhes contradição tão óbvia? Com o tempo percebi a ingenuidade do meu espanto. É justamente a onipresença da língua que a torna invisível, como uma paisagem demasiado vista à qual já não prestamos atenção. 

Pouco importa que o falante decida encher seu cercadinho de palavras estrangeiras, gírias, emojis, abreviações: antes de falar português, pensamos, sonhamos, gememos, respiramos português. Até nosso silêncio é feito de português. 

Há quem o chame de brasileiro. Eu mesmo já o fiz, no título de um livro, como provocação e reconhecimento da necessidade de varrer as teias de aranha deixadas em nossa cabeça por uma concepção burrinha de superioridade do jeito luso de falar e escrever.

No entanto, como esclareço logo nas primeiras linhas de “Viva a Língua Brasileira!” (Companhia das Letras), considero a língua plástica e vocálica que falamos —e nisso tenho a companhia da maioria dos estudiosos— uma variedade do velho português que os navegadores espalharam pelo mundo. 

Há outras variedades, sobretudo na África, como nos lembra O Tamanho da Língua. Todas vivas e em movimento —para muitos linguistas, movimento centrífugo, de afastamento, como o de um universo em lenta expansão. Não duvido que estejam certos, e que um dia seja necessário declarar a autonomia linguística desses falares. 

Esse dia, porém, me parece distante. O fato de os vídeos produzidos pela Folha em diversos países dispensarem legendas —e mesmo assim baterem no ouvido, mais do que de forma compreensível, como música gostosa— atesta a consistência de nosso solo comum.

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