Culinária paraense recebe incentivos para sua difusão e preservação

Considerada a mais antiga e original do país, gastronomia do estado é tema de festival em SP

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Luiza Fecarotta
Santarém (PA)

A cozinha paraense é a mais antiga e original do país. São historiadores e estudiosos da gastronomia que sustentam essa tese sobre essa culinária amazônica, que vive um momento fértil de investimento público e expansão, a romper fronteiras.

Tomam como base fundamentos como o de que o Pará, sob um isolamento geográfico que limitava intercâmbios, preservou a cultura indígena.

Ainda que tenham convivido com influências portuguesas e africanas, as tradições sobrevivem em comunidades que perpetuam técnicas nativas e o uso de ingredientes autóctones, que a tornam tão particular, como o tucupi, líquido fermentado extraído da mandioca-brava amarela.

Evidências arqueológicas mais recentes amparam o argumento de que se trateada cozinha local mais antiga. 

“Há registros de que pratos de mandioca com peixe, fundamentais na sustância das civilizações pré-colombianas na Amazônia, existiam há 6.000 anos”, diz Ricardo Maranhão, historiador da gastronomia.
Convive com a tese outra percepção, outrora não debatida, acerca da diversidade contida não só na cozinha amazonense mas na paraense.

 

Surge, pois, um discurso que parte de um estado e agrega diferentes polos gastronômicos, convoca a enfatizar o local; um olhar atento a identificar os principais atores desse movimento, como Saulo Jennings, da Casa do Saulo, que cunhou a expressão “cozinha tapajônica”.

A recém-realizada 15ª edição do festival Ver-o-Peso, lançado pelo chef Paulo Martins (1946-2010), disseminador pioneiro da cultura paraense, concentrou-se nessa diversidade.

Celebrou, por exemplo, a cultura do búfalo e os traços tropeiros da cozinha do Marajó; os produtos da floresta densa e os povos tradicionais do Xingu; a farinha d’água e os frutos do mar da região de Bragança; a cozinha ribeirinha dispersa nas diversas ilhas que cercam Belém, eleita pela Unesco como cidade criativa da gastronomia.

Hoje, Paulo Martins dá nome a um instituto liderado pela filha Joanna, voltado ao aprofundamento dos conhecimentos ligados a essa cozinha. Em julho, promoverá um curso de culinária imersiva amazônica que conjugará teoria e vivências em comunidades.

Também sob o comando de Joanna, a empresa Manioca desenvolve produtos a partir de ingredientes amazônicos. Reforça a pequena indústria para divulgar produtos como chocolate, cachaça de jambu (erva que provoca dormência na boca), farofas e doces.

Pescador limpa os peixes de água doce na beira do rio Tapajós, em frente ao restaurante Casa do Saulo (Santarém, PA) - Luiza Fecarotta/Folhapress

“O empreendedorismo é um jeito de tornar a cultura mais conhecida e uma forma de preservá-la. A melhor preservação é o uso”, diz o historiador Ricardo Maranhão. 

Para Álvaro Espírito Santo, diretor da pasta de Turismo do Pará, “não se pode colocar a comida numa redoma, temos de criar instrumentos de preservação, sem isolá-la do que está acontecendo”.
Vive-se um momento fecundo nessa cozinha, que aprofunda o intercâmbio entre chefs e produtores e recebe mais investimento público.

O governo pôs a gastronomia como uma de suas cadeias produtivas prioritárias e tirou do papel projetos como o Centro Global de Gastronomia e Biodiversidade da Amazônia, que prevê restaurante, laboratório, curso superior e feira —recebeu R$ 10 milhões e deve custar mais R$ 28 milhões .

Suas ações alcançam São Paulo neste mês, em festival nos restaurantes Micaela (dias 19 e 20), Maní (21 e 22) e Capim Santo (27 a 30). O menu, que demanda reserva, sai a partir de R$ 130. Entre os chefs paraenses estão Daniela Martins, Saulo Jennings e Ofir Oliveira, conhecedor da cultura indígena da floresta, tida por ele como uma “culinária politicamente correta” por sua autenticidade e diversidade.

O intercâmbio se dá em iniciativas como a primeira edição do Cozinha Tapajós, na semana passada, com chefs locais, nacionais e estrangeiros atuando em praça pública em Alter do Chão (Santarém), com apoio do governo. O evento, comandado por Jennings, tinha como missão aprofundar e desafiar os usos dos ingredientes locais.

Mandioca colhida em um pequeno roçado, transformada em farinha d'água, da qual se extrai o tucupi - Luiza Fecarotta/Folhapress

No improviso, chefs como Helena Rizzo (Maní), Mara Salles (Tordesilhas), Bela Gil (apresentadora do “Bela Cozinha”) e Neide Rigo (nutricionista autora do blog “Come-se”) arriscaram possibilidades para produtos como a mandiocaba, raiz rechonchuda com 70% de água que fez as vezes do peixe num ceviche, e o feijão de Santarém, que combinado ao leite de castanha-do-pará virou base de um homus.

Produtos inexplorados foram incorporados, como a bochecha de pirarucu; o caule da vitória-régia, planta aquática que Roberto Smeraldi, do instituto Atá, chama de “aspargo do rio”; e o óleo de cumaru, semente aromática usada localmente como remédio, que agregou vestígios de cravo, canela e baunilha aos cookies feitos por Flor, filha de Bela Gil.

Neide Rigo, que estimula a troca do trigo pela mandioca, apelidou sua receita de pamonha tapajônica —bolinho no vapor com partes iguais de mandioca ralada e prensada, coco fresco e banana-da-terra.

A jornalista viajou a convite do projeto Cozinha Tapajós


A tradicional piracaia

No projeto Cozinha Tapajós, os chefs convidados foram apresentados ao ritual da piracaia, tradição indígena que envolve pescar peixes sem valor comercial, limpá-los à beira do rio, com os pés na água, e assá-los em seguida na praia. Acomodam-se galhos secos em um buraco na areia —os mais secos alimentam o fogo, os mais verdes servem de grelha. Em geral, tempera-se o peixe sobre folha de bananeira, com sal e limão, e come-se com farinha d’água, feita da mandioca fermentada, crocante e ácida.

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