Alta de juros nos EUA é gatilho para queda dos mercados de ações

Aumento nos salários pode pressionar inflação e levar a mais altas de juros no país

Tela mostra o Dow Jones, dos EUA, no pregão de 5 de fevereiro: maior queda diária em pontos do índice americano - REUTERS/Brendan McDermid

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Londres | Financial Times

Como se intoxicado pelo ar das montanhas, Donald Trump no mês passado disse à audiência do Fórum Econômico Mundial de Davos, corretamente, que "o mercado de ações está batendo recorde atrás de recorde" e, incorretamente, que "ele subiu quase 50% desde minha eleição".

Na noite daquela sexta-feira, o índice S&P 500 bateu novo recorde e fechou em 2.872,87 pontos, cerca de 34% acima da marca que detinha quando Trump foi eleito para a presidência dos Estados Unidos.

A correção inicial depois do pico atingido em Davos 10 dias atrás se transformou em algo maior. No final da semana passada, o índice mostrava queda de cerca de 4%, e a tendência persistiu na segunda-feira.

O catalisador para a mudança foi o relatório sobre a situação do emprego nos Estados Unidos, divulgado na sexta-feira, que mostra alta mais rápida que a esperada nos salários, o que traz a possibilidade de inflação maior nos Estados Unidos e de alta nos juros sobre os ativos seguros, o que reduz o valor dos ativos de risco.

A questão é determinar se as perspectivas econômicas, nos Estados Unidos e ao redor do mundo, mudaram o suficiente para justificar preços mais baixos para os ativos financeiros ou se a correção aconteceu sem um gatilho definitivo, como o professor Bob Shiller, da Universidade Yale, diz que costuma acontecer quando os mercados viram.

Considerando em primeiro lugar o motivo econômico, os números sobre o mercado de trabalho dos Estados Unidos indicaram crescimento de 2,9% no pagamento por hora de trabalho em janeiro, a alta anual mais pronunciada desde 2009, e significativamente superior à expectativa do mercado, que era de 2,7%.

Uma alta mais rápida nos salários sugere que a economia dos Estados Unidos, muito aquecida, está esbarrando nos limites normais de capacidade, e que ação das autoridades econômicas seria necessária para esfriá-la. Ian Shepherdson, economista chefe da Pantheon Macroeconomics, disse que "é preciso enfatizar vigorosamente que uma alta sustentada nos salários dará mais poder à linha dura do Fed e enfraquecerá os defensores de uma atitude mais branda. Esse era um acidente que estava à espera de acontecer".

É esse o dilema que aguarda Jay Powell, que assumiu como chairman do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, na manhã da segunda-feira.

Os Estados Unidos também estão longe de serem a única parte do mundo que mostra números econômicos surpreendentemente fortes. O índice composto dos executivos de compras europeus atingiu seu nível mais alto desde 2006, em janeiro, e o crescimento chinês se firmou em 2017, o que significa que as três maiores economias do planeta estão apresentando desempenho forte, e sugere que a inflação, há muito adormecida, pode começar a se mexer.

O FMI (Fundo Monetário Internacional) no mês passado elevou sua projeção para o crescimento mundial em 2018 a 3,9%, mencionando "a alta sincronizada de crescimento com a mais ampla base mundial desde 2010", mas economistas que acompanham dados mais atualizados acreditam que o ritmo de crescimento possa ser ainda mais forte.

Gavyn Davies, presidente da Fulcrum Asset Management, diz que os "nowcasts" de sua empresa, que combinam todos os dados econômicos disponíveis em uma só estimativa quanto ao desempenho econômico atual, sugerem que a economia mundial esteja crescendo em ritmo anualizado de 4,5%, com as economias avançadas se expandindo em ritmo muito superior à sua capacidade de crescimento sustentável.

Se isso for verdade, uma inflação superior à esperada nos Estados Unidos poderia ser um sinal do que está por vir em outras economias, à medida que o desemprego cai rapidamente. A expectativa já era de que os bancos centrais desacelerariam a criação de dinheiro em 2018, e agora eles podem começar a apertar sua política monetária, o que traria alta nas taxas de juros de mercado, colocando pressão de baixa sobre as ações e títulos de dívida.

Mas que a perspectiva econômica positiva para as economias resulte em perspectiva pessimista para os mercados financeiros não é nem de longe a única maneira de encarar as tendências recentes. Se as perspectivas econômicas mundiais melhorarem mais rápido do que as expectativas de alta nas taxas de juros, avaliações altas para as ações continuariam a se justificar.

Também existem razões para duvidar de que a perspectiva econômica e, especialmente, inflacionária, tenha mudado tanto quanto alguns observadores sugerem. Na Europa, com o desemprego da zona do euro ainda em 8,7%, mais postos de trabalho poderiam ser criados sem que isso resultasse em uma onda descontrolada de pressão inflacionária. A inflação na área da moeda unificada caiu a 1,3% ao ano em janeiro, depois de ter chegado aos 2% por um breve período no começo de 2017, o que deixa muito espaço para que o BCE (Banco Central Europeu) tire o pé do acelerador bem devagar.

Mesmo nos Estados Unidos existem diferentes interpretações dos mais recentes sinais de que a inflação salarial está subindo, e de que isso criará pressões inflacionárias sustentadas que as autoridades monetárias teriam de enfrentar. Harm Bandholz, economista chefe do UniCredit Bank para o mercado dos Estados Unidos, aponta que a alta na remuneração por hora de trabalho talvez tenha sido causada por uma queda "incomumente grande" no número de horas trabalhadas por semana.

"Os avanços salariais devem continuar a se acelerar gradualmente à medida que a frouxidão do mercado de trabalho diminui. Mas não seria surpresa que os números atuais [sobre o emprego nos Estados Unidos] passassem por uma correção técnica antes que a tendência de alta seja retomada", ele disse.

Poucos economistas consideram provável que o potencial subjacente de crescimento das economias avançadas tenha melhorado, o que seria necessário para uma recuperação sustentada nos ganhos de produtividade e uma alta nas taxas de juros de longo prazo. A maior parte do movimento de alta nas taxas de juros de mercado, até agora, aconteceu nas taxas de curto prazo, o que indica alta mais rápida que a esperada nas taxas oficiais de juros mas não um nível mais alto para os juros em longo prazo.

Os argumentos econômicos que justificariam preocupação quanto ao retorno da era da inflação continuam a não ter sustentação nos dados dizem os economistas. Davies afirma que "a alta recente do crescimento mundial é principalmente um fenômeno de demanda cíclica, que até o momento teve impacto moderado sobre o crescimento sustentável em longo prazo". Os movimentos de mercado provavelmente representam uma correção espontânea.

Se os sinais de alta inflacionária nos salários se tornarem mais pronunciados nos Estados Unidos, no entanto, e começarem a surgir em outros mercados de trabalho apertados, como os da Alemanha e Japão, medos mais profundos sobre as avaliações dos ativos financeiros devem surgir nos próximos meses.

 Tradução de PAULO MIGLIACCI

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