Flavio
Florido |
Carta
de Caminha é reverenciada e criticada |
|
da
Folha de S.Paulo 24/04/2000 11h57
em São Paulo
"Pero Vaz de Caminha tem o mérito de ter sido
o padrinho da rede de dormir, talvez a maior contribuição
indígena para nossa |
A
carta de Caminha |
cultura,
porque é o embalo do sonho", afirma |
Gilberto
Vasconcellos,
professor de ciências sociais da Universidade Federal
de Juiz de Fora.
Os
especialistas se dividem entre a reverência e a desmitificação
com a volta da carta de Caminha ao Brasil, para a celebração
do quinto centenário do Descobrimento. O documento,
um relato ao rei de Portugal D. Manuel 1º, sobre a expedição
de Cabral, é considerado a primeira notícia
oficial sobre a existência do Brasil, e estará
exposto na Mostra do Redescobrimento a partir de amanhã,
em São Paulo.
A
carta chega acompanhada de uma seleção de arte
portuguesa do século 16, vinda do Museu de Setúbal,
para contextualizar esteticamente o período da descoberta,
e de diversos documentos, entre eles a versão catalã
do Tratado de Tordesilhas.
A
vinda da carta é uma ocasião única para
apontar os elementos mitificantes da história, na opinião
do historiador José Murilo de Carvalho, professor titular
do departamento de história da Universidade Federal
do Rio.
A
carta de Caminha só foi publicada em 1817 por Aires
de Casal. Até então, o grande documento da chegada
dos europeus aqui entre 1499 e 1501 (os espanhóis Hojeda,
Pinzón e Diego de Leppe, o português Cabral,
o florentino Vespúcio) era a carta de Vespúcio
a Lourenço de Médici, publicada em 1503, explica
Carvalho.
Igualmente
conhecida foi a carta de Vespúcio a Soderini, publicada
em torno de 1505, relatando sua segunda viagem. As duas lhe
valeram a homenagem de Waldseemuller, que chamou de América
o novo continente.
"Por
aí já se vê que considerar a carta de
Caminha nossa certidão de nascimento já faz
parte de uma construção que inclui dois elementos
principais: afirmar a primazia portuguesa em nossas terras
e firmar uma visão idílica do contato entre
portugueses e nativos", afirma o historiador.
Com
pompa e circunstância, o documento será exposto
com iluminação e segurança especiais,
colocado contra uma parede dourada, envolto em uma aura de
preciosidade. A visão crítica fica por conta
dos artistas brasileiros.
Inicialmente
ela seria acompanhada de 11 releituras da carta feitas por
artistas portugueses, uma pequena exposição
que a Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses atrelou à vinda do documento
ao Brasil. O curador Emanoel Araújo convidou artistas
brasileiros para fazer o mesmo.
O
paraense Emmanuel Nassar reproduziu uma das páginas
da carta e mandou ampliar em banner. Sobre ela, imprimiu suas
iniciais, rasgando o vinil.
"Cometi
um ato de vandalismo, produzindo um grafite desses que se
vêem nas ruas, que são a mais radical expressão
do individualismo", diz Nassar. A carta, ao ser ampliada
tantas vezes, apresentou uma granulação. "De
longe é um documento histórico, de perto é
pop", brinca.
A
leitura contemporânea está na visão de
um documento de 500 anos por meio de reprodução
tecnológica moderna.
Rasurar a carta estabelece um diálogo com algo primitivo.
São duas linguagens se cruzando, uma intersecção
entre o simbolismo das imagens: a carta sendo um símbolo
coletivo e o vandalismo, um símbolo individual.
Luiz
Zerbini criou uma escultura da fusão de dois corpos
sem cabeça e colocou sobre os torsos unidos dois crânios.
"Nunca tinha lido a carta toda, achei que meu trabalho
tinha a ver com ela", diz o artista, que pintava paisagens
figurativas.
"A primeira imagem que um cara tem do Brasil é
essa, é a paisagem. Depois, o encontro de duas civilizações
trouxe coisas boas e ruins, daí retratar o drama da
diferença, remetendo inclusive à questão
da antropofagia", diz.
Se
Caminha escrevia sobre o comportamento dos índios,
que, ao cabo de uma semana, "andavam já mais mansos
e seguros entre nós, do que nós andávamos
entre eles", manso é o comportamento dos portugueses
ao reinterpretar a carta. "Enquanto eles fazem obras
ilustrativas, os brasileiros são viscerais", diz
o curador-geral, Nelson Aguilar.
(Juliana
Monachesi)
O
quê: Brasil+500, Mostra do Redescobrimento
Quando: de terças a sextas, das 14 às
22h; sábados, domingos e feriados das 9 às 22h
Onde: Parque Ibirapuera, em São Paulo
Quanto: de terças a sextas, R$ 7 por pavilhão
e R$ 10 o pacote de três pavilhões; sábados,
domingos e feriados, R$ 10 por pavilhão e R$ 15 o pacote
de três pavilhões. O Cinecaverna custa R$ 6 qualquer
dia.
Informações: 0800-780500
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