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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
03/10/2004
Voto Marterra

A pesada troca de agressões entre José Serra e Marta Suplicy, particularmente na semana passada, transmite a impressão de que eles têm visões opostas. Errado: ideologicamente, os dois candidatos são muito parecidos, quase iguais. Poderiam até estar no mesmo partido.

No segundo turno, o eleitor atento perceberá que a diferença não reside na opção pelos mais pobres e na necessidade de melhorar os serviços de saúde e educação, mas apenas nas habilidades gerenciais -ou seja, em como administrar melhor os recursos para reduzir a exclusão social.

Na semelhança entre os dois candidatos, criando o voto "Marterra", está a verdadeira revolução paulistana. É uma revolução não de obras, de métodos de gestão, mas de um olhar.

Quem analisar friamente a biografia de José Serra e a de Marta Suplicy vai perceber que ambos estimularam ações para diminuir a pobreza e a desigualdade. Se poderiam fazer mais e melhor com o poder que detiveram é um outro debate.

Uma das vítimas do regime militar, Serra está associado a conquistas como os genéricos, a quebra de patentes dos remédios contra a Aids, o seguro-desemprego e a bolsa-alimentação. Apesar de ser acusado, nesta campanha eleitoral, de conivência com a política de juros da gestão FHC, algo que, de fato, complicou as finanças de São Paulo, a verdade não é bem essa. Mesmo dirigentes do PT sabem que o candidato do PSDB fazia, dentro do governo, oposição à política econômica.

Marta, por sua vez, está associada à identificação com as questões de gênero e com as minorias, bem como a conquistas como o bilhete único, a inauguração de melhores vias exclusivas para os ônibus, os programas de renda mínima e a disseminação de programas culturais e esportivos na periferia. O CEU, se é uma política educacional que suscita justificadas dúvidas, é inegavelmente um avanço como projeto de inclusão comunitária.

Os dois tiveram experiências em entidades não-governamentais e viveram nos Estados Unidos, onde o trabalho comunitário faz parte da rotina de todos os cidadãos. Isso influenciou a visão deles sobre a importância de parcerias com a comunidade, destoando da visão tradicional das esquerdas. Os contatos acadêmicos internacionais e o fato de terem vivido no exterior deram a Marta e a Serra uma visão de mundo cosmopolita.

Mas por que, afinal, a semelhança ideológica entre Marta e Serra revela a revolução de um olhar? Simples: porque, seja por marketing, seja por medo (ou pelas duas coisas juntas), a elite paulistana desenvolveu nos últimos anos um senso de responsabilidade.

Não existe um só empresário importante, uma só empresa importante ou mesmo uma escola importante que não apresente, com menor ou maior consistência, um programa orientado pela preocupação com a pobreza e com a violência. A violência nos fez seres acuados pelos seqüestros, pelos assaltos, pelos assassinatos. Diante da selvageria, os mais poderosos, mesmo cercados de blindagens e de segurança, sentem-se frágeis, vulneráveis.

São Paulo é a referência brasileira em terceiro setor porque os empresários chegaram à conclusão de que o papel da empresa não é só obter o lucro. E também (aí entra o marketing) porque os consumidores se importam cada vez mais com a contrapartida comunitária dos negócios.
A elite empresarial mescla-se com a elite intelectual, que, em sua maior parte, aceita as regras do jogo de mercado e vê como solução mais investimentos sociais, especialmente em educação.

Marta e Serra são a expressão desse consenso que se dissemina pelo país, mais visível em São Paulo devido à tradicional distância da cidade dos poderes federais (nunca fomos corte), à sua força econômica e à concentração de entidades do terceiro setor.

Do ponto de vista do eleitor não preocupado com a sucessão presidencial ou estadual, a escolha do próximo prefeito é, portanto, muito mais sutil do que uma briga entre esquerda e direita, entre quem é e quem não é sensível aos problemas dos mais pobres.

A discussão relevante é saber qual o melhor candidato para gerir os escassos recursos de uma cidade quebrada. É um debate complexo, bem menos charmoso do que a guerra entre o bem e o mal. Mas é aí, somente aí, que se encontrará a diferença entre José Serra e Marta Suplicy -o resto é marketing.

PS - Como uma das pragas eleitorais é o culto a obras físicas (daí que tudo é faz, fez e fará), nem Marta nem Serra se preocuparam em deixar claro, certamente porque isso não rende votos, qual é o melhor investimento para um prefeito diminuir mesmo a exclusão. Como um prefeito tem ação muito limitada para gerar emprego e mesmo para distribuir renda, sobra-lhe melhorar a educação. E só se melhora a educação com investimentos maciços e permanentes nos professores. O problema é que essa é uma obra que não se vê porque está dentro da cabeça dos mestres. E demora muito tempo para aparecer. É o antimarketing, mas é o que de mais sério se pode fazer para elevar, a longo prazo, a qualidade de vida de uma cidade.


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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