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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
03/10/2005
Lula na Cidade do Sol

Depois de se submeter, em 2003, a duas operações na cabeça, o maestro Sílvio Bacarelli, sempre cheio de compromissos e projetos, começou a sentir um estranho desânimo. Não queria mais sair de casa, preferia ficar no quarto, deitado na cama, sem ver ninguém. "Nunca tinha sentido nada parecido." Tratada com remédios, a depressão perdurou por seis meses.

Ele atribui parte de sua recuperação ao prazer de ensinar música. "Ficava pensando nos ensaios e nas apresentações." Pensava, em particular, na experiência que desenvolve, desde 1996, na favela de Heliópolis, onde comanda uma orquestra sinfônica. "Na cama, eu imaginava os alunos me esperando."

Passada a depressão, ele voltou a freqüentar regularmente Heliópolis, ampliou o número de matrículas e planejou uma nova sede. Neste ano, resolveu oferecer um programa de balé. As aulas serão dadas por Ana Botafogo, uma das mais importantes bailarinas brasileiras. "Quando decidi ensinar música erudita a jovens de favela, alguns riram, outros acharam que eu estava doido", conta Bacarelli, hoje com 74 anos - e muito bem de saúde.

À primeira vista, uma bailarina do porte de Ana Botafogo dançando na favela parece exótico. Tão exótico quanto um dos alunos de Bacarelli -o contrabaixista Adriano Costa Chaves- estudar hebraico para fazer um estágio na Filarmônica de Israel, convidado pessoalmente pelo maestro Zubin Meta. Com 120 mil habitantes, a maioria dos quais vivendo abaixo da linha da pobreza, Heliópolis (que, em grego, significa "Cidade do Sol", o que sugere uma ironia) é a maior favela de São Paulo, cuja imagem está associada à degradação urbana e, especialmente, à violência.

Pela primeira vez, eles recebem um presidente. Nesta segunda-feira, Lula é esperado em Heliópolis para inaugurar um centro de cultura multimídia destinado a jovens. Se tivesse tempo e disposição para entender o que acontece à sua volta, veria que é mais fácil combater a miséria partindo daquele modelo de fortalecimento local, construído numa favela, do que partindo da distante Brasília, com suas tramóias.

O aparente exotismo da bailarina ou do contrabaixista que estuda hebraico é sinal da engenhosidade da rede de confiança entre as pessoas, que não espera a salvação dos governos. No mês passado, graças a uma parceria entre o mais importante crítico literário brasileiro, Antônio Cândido, e o arquiteto Ruy Ohtake a comunidade inaugurou uma biblioteca, trazendo de Shakespeare a Eça de Queiroz, passando por Clarice Lispector e Graciliano Ramos. Mas também se oferecem jornais com classificados de emprego. Como na maioria das regiões metropolitanas, a maioria dos jovens dali está desocupada.

Autor de alguns dos mais comentados projetos arquitetônicos realizados em São Paulo, Ruy nunca imaginou que seria chamado a embelezar favelas. "Sou de uma geração de arquitetos formados na década de 70 que acreditavam que as favelas eram um problema passageiro." Foi convidado por uma liderança local - o pernambucano João Miranda - para tirar um pouco o ar sombrio, sem cores, de Heliópolis. Resolveu, então, transformar a fachada de 270 casas da rua principal numa grande intervenção colorida. Em conjunto com os moradores, fez um imenso painel contíguo. Quando estavam pintando as casas, João Miranda admirava-se com as várias tonalidades de azul. "Ô seu Ruy, nunca vi um azul assim!" Diante do perplexo arquiteto, ele explicou: "Pensei que só existisse uma cor azul, só uma; aqui tem muitas". Pela primeira vez, Ohtake tinha testemunhado a surpresa de um adulto que descobria as tonalidades das cores. A descoberta das tonalidades das cores é apenas uma imagem que representa a descoberta das várias idéias quer podem ser costuradas numa comunidade. Para fazer Eça de Queiroz, Ana Botafogo, Bach, Shakespeare e Zubin Meta irem para Heliópolis, com seu cenário sem cores e repleto de violência, montou-se um modelo passível de reprodução em qualquer lugar -um grupo de pessoas que se juntam para valorizar o conhecimento sem esperar as soluções do poder público.

Lá, aliás, é o lugar em que o diretor de uma escola municipal - Brás Rodrigues Nogueira- faz curso de pós-graduação (e já está dando palestras) sobre a arte de envolver a comunidade no apoio à educação. Todas essas experiências não significam que Heliópolis se tenha convertido na Cidade do Sol. "O modelo de sucesso de muitas das crianças são os traficantes e os delinqüentes", diz o maestro Bacarelli. Ele mostra, porém, que, entre as sombras, é possível captar alguns raios. Não é muito, mas é melhor do que as trevas que estão vindo de Brasília.

PS - Esta coluna nasceu menos da visita de Lula do que de um número. Até sexta-feira à noite, ocasião do fechamento desta coluna, nenhum assassinato tinha sido noticiado nos últimos 30 dias em Heliópolis, onde a queda da taxa de homicídios já atingiu, nos últimos três anos, cerca de 60%. Nem de longe se pode imaginar que essa situação seja apenas um efeito da ação da polícia. É o efeito da música erudita, da literatura -e, acima de tudo, das várias tonalidades de azul.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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