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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
12/09/2005
A incrível matemática do professor Wesley

Wesley Miquelino é um adolescente negro, estuda à noite e vive numa casa de dois quartos na periferia de São Paulo, povoada pela pobreza e pela violência -ele divide um dos quartos com a irmã. Estatisticamente, a trajetória de um menino negro da periferia é previsível: primeiro, a dificuldade de concluir o ensino médio; depois, se não parar por aí, provavelmente irá cursar uma faculdade privada de qualidade discutível e terá de bancar uma mensalidade. Resumem-se nele as limitações daqueles que, além da baixa renda e do pouco acesso à educação pública decente, são discriminados pela cor.

Não seria nada difícil para o próprio Wesley manusear números e traduzir em estatísticas suas dificuldades. Ele ficou em segundo lugar numa olimpíada de matemática, na qual disputaram estudantes de uma das mais conceituadas escolas brasileiras, que são, em sua maioria, trilíngües -falam português, inglês e alemão. Obteve também o segundo lugar de um concurso nacional de informática, com intrincados testes de lógica. "Tenho imenso prazer em fazer testes matemáticos", diz. Seus dois outros prazeres são a leitura e o basquete.

O roteiro previsível para o menino negro da periferia foi alterado por um detalhe -na verdade, uma raridade estatística. Quando tinha seis anos de idade, ele se candidatou a uma vaga na Escola da Comunidade, mantida pelo colégio Visconde de Porto Seguro, criado por alemães para oferecer um nível educacional semelhante ao dos europeus.

Com os mesmos professores e o mesmo currículo do Porto Seguro (exceto as aulas de alemão, que são substituídas por mais aulas de informática), a Escola da Comunidade é gratuita e oferecida a estudantes de famílias pobres; a imensa maioria deles é egressa de uma favela chamada Paraisópolis, onde se concentram alguns dos piores indicadores de violência da cidade.

Há casos de vários alunos que passaram por ali e conseguiram prosperar, entrando nas melhores faculdades. Um deles virou médico e agora seus filhos estudam no Porto Seguro -desta vez bancando uma mensalidade cara mesmo para famílias de classe média mais alta. Quem quiser se aprofundar nesse assunto poderá ler no meu site (www.dimenstein.com.br) um relato dessa experiência . É semelhante ao que ocorre na escola da Embraer, também gratuita, divulgada na coluna passada, na qual os alunos de escolas públicas estão entrando nas melhores universidades. Wesley logo demonstrou talento para a matemática, o que ficou notório com seu desempenho na olimpíada: enfrentou alunos não só da Escola da Comunidade mas também do Porto Seguro, onde estão matriculados filhos de famílias da elite econômica e intelectual paulistana.

Além do empenho em matemática, desenvolveu o prazer pela leitura de romances. Todas as semanas, ele vai à biblioteca e pega pelo menos um livro. "Já estou começando a ler bem em inglês", orgulha-se.

Desde o início deste ano, passou a atuar, sem remuneração, como professor. Chega mais cedo à escola e ajuda colegas mais novos que têm dificuldades em matemática -uma professora deu-lhe dicas sobre didática . "Quem sabe eu não sigo a carreira de professor?", questiona-se.

Ainda está em dúvida sobre o curso para o qual prestará vestibular. "Tenho tempo para decidir." Está na primeira série do ensino médio e ainda faltam, portanto, dois anos para o vestibular.

Antes disso, talvez enfrente outro vestibular, desta vez como professor. Seu pai, Sérgio Miquelino, 43 anos, terminou há muito tempo o ensino médio, mas, por falta de apoio, não pôde ir mais longe. Além de ter de trabalhar, jamais conseguiria bancar uma faculdade privada. O pai quer, agora, entrar numa faculdade. "O acerto é que o filho ajude o pai", diz Maria de Fátima, mãe de Wesley. "Depois do meu marido, será a minha vez. Nosso filho será um de nossos professores."

Wesley imagina-se daqui a dois anos calouro de um curso de engenharia ou administração de uma universidade pública. Mas sabe que, seja lá qual for sua escolha, continuará sendo professor, mesmo que nunca mais dê aulas: ele ensina o que muitos poderiam ser se a chance que teve não fosse uma raridade estatística.

PS - O que me motivou a escrever a história de Wesley foram duas pesquisas divulgadas na semana passada. Em parceria com a Ação Educativa, o Ibope informou que 75% dos brasileiros são analfabetos ou semi-analfabetos; oscilam entre não saber ler, ler e não entender e entender pouquíssimo do que leu. A segunda pesquisa é sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), feita pela ONU: estamos socialmente abaixo, muito abaixo, de países vizinhos e com o mesmo ou pior nível de renda per capita -o Chile, por exemplo, onde 90% dos jovens de 15 a 17 anos estão no ensino médio. Imaginando quantos Wesleys deixamos de gerar pela falta de prioridade à educação, essas pesquisas mostram escândalos maiores, muito maiores, do que aqueles que estamos vendo com os mensalinhos, mensalões, Dirceus, Severinos, Delúbios e Malufs. Nessa matemática, aliás, quanto mais Wesleys houver, menor será o número de larápios.

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Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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