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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
05/09/2005
Cidadãos blindados

Em 2002, a Embraer iniciou um teste que nada tinha a ver com aviação. Montou um laboratório educacional para colocar estudantes de baixa renda nas melhores universidades públicas -considerando a realidade brasileira, um desafio tão grande quanto ganhar mercados internacionais para aviões.

Selecionados pela empresa na rede pública de São Paulo, alunos de ensino médio começaram a ter nove horas diárias de aula. Além de recuperar conhecimentos que deveriam já ter sido aprendidos no passado, eles submeteram-se a um currículo com ênfase em experimentação e vivências culturais. O resultado apareceu no início deste ano, quando saíram as listas dos aprovados: 89% entraram no ensino superior. Quase metade deles em universidades federais e estaduais.

Pode-se argumentar que a eficiência da escola criada pela Embraer se deve, pelo menos em parte, à oferta de nove horas diárias de aula ministradas por bons professores somada à seleção dos alunos mais empenhados da rede pública. Verdade. Não há dúvida, porém, de que na receita do sucesso é a obra de engenharia comunitária. O que poderia ser visto como uma ação limitada, provinciana, é a essência do que há de mais contemporâneo para pensar um projeto de blindagem do Brasil, que, como vimos na semana passada, não pára de levar tiro.

Na semana anterior, aliás, vieram de Brasília tiros de canhão. Senado e a Câmara, onde a média de rendimentos é de respectivamente R$ 17 mil e R$ 14 mil mensais, tiraram proveito da crise e aumentaram os rendimentros de seus funcionários. Custo direto: R$ 500 milhões. Se a normas se estenderem aos demais poderes, a conta pode chegar a quase R$ 10 bilhões.

Em meio a uma gigantesca indignação nacional, investiga-se, no Congresso, a procedência de milhões para caixa dois de campanhas. Mas, numa só tacada, esse mesmo Congresso prepara um rombo de bilhões.

Justamente através desse mecanismo de apropriação de recursos por segmentos mais organizados, temos uma situação estapafúrdia: nossos gastos sociais ( 25% do PIB) são comparáveis aos das nações mais ricas. Os resultados, como se sabe, são pífios. Exemplo: um aposentado comum recebe, em média, 1,8 salário mínimo. Um aposentado do Legislativo 37 salários mínimos.

Chegamos onde chegamos, pagando tanto imposto, sustentando tantos privilégios, porque o brasileiro, deseducado e desarticulado, não tem blindagem. E também porque reverencia muito os poderes centrais e pouco o que acontece na rua, no bairro ou na cidade.

Na semana passada, mais um fato revelou uma obra de engenharia comunitária que ajuda a blindar o Brasil: o assalto a pedestres no viaduto do Chá, espaço-símbolo do centro de São Paulo. Até pouco tempo, dizia-se que toda aquela região estava condenada ao abandono, imersa na violência e na pobreza. Estatísticas divulgadas na quinta-feira mostraram que, no semestre passado, no viaduto do Chá, em que caminham diariamente 700 mil pessoas, o crime caiu drasticamente. Do primeiro semestre de 2003 até o mesmo período deste ano, o número de pedestres vítimas de roubo caiu 96%.

Como mostram as estatísticas, é muito mais provável alguém ser assaltado na avenida Higienópolis, um dos lugares mais elegantes de São Paulo, repleto de segurança privados, do que no viaduto do Chá, com seus pedintes e crianças de rua.

O formidável desse esforço é que não existe um autor. Surgiu porque um grupo de pessoas que gostavam do centro resistiu e mobilizou a comunidade. Depois vieram, em rede, os governos municipal, estadual e federal. Moradores, empresas, repartições públicas e universidades voltam para o centro. Universidades significam jovens nas ruas e vida noturna. Para viabilizar esse processo, criou-se todo um plano de segurança. Se quiserem ver como esse tipo de costura funciona, olhem o que ocorreu no centro antigo de Recife. Lá, em meio à degradação, surgiu um porto digital, incubando empresas de alta tecnologia.

Essa engenhosidade é o que aprendemos andando, com menos medo, no viaduto do Chá; no centro de Recife, vendo menos prostitutas e mais engenheiros de software; em escolas em Sobral, interior do Ceará, em que todas crianças começam estudar aos seis anos e se alfabetizam na primeira série; em Santa Rita do Sapucaí (MG), onde a prefeitura uniu-se à universidade e estimulou a criação de tantas empresas que hoje sobram empregos; em Boa Vista (RR), onde, por causa de uma rede de assistência social, quase se extirpou a guerra de gangues; em Diadema, onde não existem mais à venda revólveres de brinquedo para crianças; em São Carlos (SP), onde o índice de reincidência de delinqüência juvenil é de 2% porque se unificaram, em torno dos jovens, políticas públicas; e em Praia Grande, na Baixada Santista, em que se elegem professores para atuar na escola como lideres comunitários.

Ou numa escola pública do interior de São Paulo, onde jovens, graças a uma empresa, não entram na estatística de fracasso educacional, mas nas estatísticas das melhores faculdades. Se Brasília é, hoje, mais um laboratório de problemas, as cidades, desde que espaços organizadores dos recursos federal, estadual e municipal, podem ser nossa melhor solução para blindar o Brasil.


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Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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