HOME | NOTÍCIAS  | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS


REFLEXÃO


Envie seu comentário

 

urbanidade
19/07/2006
Doador de um olhar

Vincenzo buscava, em seus desenhos, extrair beleza do caos paulistano, assim como fazia na luta contra o câncer

Submetido a vários meses de sessões de quimioterapia, o designer gráfico Vincenzo Scarpellini aproveitava o tempo disponível no hospital para desenhar e contar a história de personagens anônimos enfrentando a morte. Era um misto de diário de viagem, notas autobiográficas e reportagem sobre uma dimensão quase invisível da solidão cotidiana. "Desenhar era um jeito de resistir", dizia, na condição de paciente. Como artista, porém, aprendia a descobrir a beleza estética na resistência à dor. "É a vontade de seguir em frente que mostra nossos limites." Sua tragédia tinha um toque irônico.

Nascido em uma pacata cidade medieval italiana com 60 mil habitantes (Ascoli Piceno), Vincenzo procurava, em seus desenhos, extrair beleza do caos paulistano -assim como fazia no hospital. Preferia morar no centro da cidade. "Daqui eu sinto toda a energia paulistana."

Esse olhar produzia estranheza. "As intervenções de Vincenzo causaram ruído em meio ao noticiário cinzento. Elas nos davam notícias diferentes da cidade. Notícias necessárias. Falavam de casos e coisas que escapam aos olhos e ouvidos que se atropelam nas urgências da metrópole. Criaram um oásis", comentou o escritor Marçal Aquino, um dos observadores da paisagem caótica da cidade.

Vincenzo insistia na idéia de que era possível ver o belo nesse tumulto -talvez por seu olhar estrangeiro. "São Paulo é uma cidade que não se quer ver, que procura fugir de si mesma." Ele ia buscando ângulos e formas inusitadas urbanas, enquanto colecionava casos de personagens longe do mundo das celebridades. O câncer levou-o a virar um desses seres anônimos, invisíveis num hospital, obrigados a encarar o pior de uma cidade. Natural, portanto, que tivesse, nos desenhos, de se retratar, esquálido, quase irreconhecível. "Os instantes em que estamos bem tornam o viver muito mais belo. Qualquer coisa vale comemoração. Um raio de sol entrando pela janela, por exemplo. Uma flor perdida num canteiro sem graça."

Depois do fracasso de medicamentos tradicionais, testou remédios em fase de experiência -uma chance para desenhar seu novo médico. Com esses remédios, Vincenzo teve alguns momentos de esperança, a tal ponto que chegou a viajar para Nova York. Mas, na volta, parou na Itália e sentiu-se mal. Imaginou que estaria mais seguro na cidade que adotou do que na terra em que nasceu. Preferiu retornar a São Paulo, de onde, no hospital, reclamava da estética neoclássica de prédios novos. "É um horror." No sábado passado, a guerra acabou. Tinha pedido para que doassem o coração e os olhos. O coração já não servia. Mais do que seus olhos, acabou doando um olhar.

P.S. - Sinto-me um pouco herdeiro desse olhar. Por vários anos, Vincenzo dividiu a coluna neste espaço. Com seus desenhos, aprendi a descobrir uma cidade e o encanto de seus personagens anônimos, capazes de mostrar a beleza pela resistência. Talvez seja mesmo a única forma de olhar a beleza nesta cidade.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES
18/07/2006 Só R$ 150 por mês
16/07/2006
Quatro lições da professora Inês
14/07/2006
Escola do crime
13/07/2006
A boa lição do PCC
12/07/2006
O impossível dançou
11/07/2006
Vergonha dos paulistanos
10/07/2006
Apenas R$ 12
05/07/2006 Garagem mágica
04/07/2006
Malandragem do Bolsa-Família
03/07/2006
Lula ameaça o Bolsa-Família?