São Paulo, Sexta-feira, 05 de Março de 1999
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Biografia se debruça sobre o "mistério" Clarice


Obra de Teresa Cristina Ferreira divide a vida da escritora em capítulos de acordo com os lugares em que ela viveu


MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Passados apenas quatro anos da publicação da primeira biografia brasileira de Clarice Lispector (1920-1977), surge outro livro sobre a vida da escritora: "Eu Sou uma Pergunta - Uma Biografia de Clarice Lispector", de Teresa Cristina Montero Ferreira.
O trabalho foi tese de mestrado em literatura brasileira para a PUC do Rio de Janeiro. Inevitável compará-lo com a primeira biografia, "Clarice - Uma Vida Que Se Conta", de Nádia Battella Gotlib (editora Ática, 1995).
Infelizmente, a obra de Teresa Ferreira tem pouco a acrescentar à de Gotlib no que se refere a revelações, documentos ou depoimentos que nos levem a um conhecimento mais aprofundado da autora por meio do estudo de sua vida.
O material pesquisado por ambas as biógrafas é basicamente o mesmo, assim como os depoimentos tomados, as cartas e os trechos da obra clariceana, utilizados como elementos constitutivos da própria narrativa biográfica -o que, numa e noutra, surge às vezes como excesso de interpretação ou exercício de preenchimento dos vazios documentais.
A pesquisa de Teresa Ferreira divide a vida de Clarice em capítulos, de acordo com os lugares em que ela viveu. Começa pela Ucrânia, onde a escritora nasceu durante a viagem de seus pais rumo ao Brasil. Segue por Recife, onde Clarice passou a infância, continua no Rio, onde ela se fez adulta, e passa por várias cidades estrangeiras onde residiu com o marido diplomata.
Ao mesmo tempo que essa divisão impõe ordem cronológica, estabelece uma rigidez incapaz de fazer as correlações tão interessantes entre o passado e o presente atual dos personagens ligados à autora que ainda estejam vivos. Desse ponto de vista, a biografia de Gotlib situa melhor o leitor.
Além disso, a datação na narrativa de Ferreira é um tanto confusa, as datas vão se perdendo pelo caminho. Por exemplo: no início do capítulo "Rio de Janeiro" lê-se que: "Quando o navio atracou no porto do Rio de Janeiro, Pedro Lispector deu-se conta de que tudo começava novamente". É preciso voltar três páginas para relembrar em que ano aquilo se deu.
A pesquisa de Teresa Ferreira, no entanto, é mais precisa e consistente quando trata do panorama histórico da Rússia onde nasceram a autora de "A Hora da Estrela" e seus ascendentes.
Enquanto o texto de Nádia Gotlib se limita a afirmar, por exemplo, que "pouco se sabe a respeito da ascendência e do nascimento de Marieta Lispector", mãe de Clarice, Teresa Ferreira traça a trajetória de Mania Krimgold (nome russo e de solteira de Marieta Lispector) desde o seu nascimento, a partir da identificação de seus pais (avós de Clarice), até seu casamento com Pedro Lispector.
A narrativa de Teresa Ferreira traz ainda descrição mais completa da doença da mãe, que morreu quando Clarice tinha 9 anos.
Quanto à doença mental do filho mais velho de Clarice Lispector, ambas as biografias mantêm igual economia, não conseguem apurar a fundo os fatos, não dizem o que era exatamente, quando começou, e que efeitos esse drama produziu na vida da escritora.
Se a biografia de Teresa Ferreira tem o mérito de apresentar mais dados sobre a relação de Clarice com suas irmãs Elisa (também escritora) e Tânia, é omissa quanto a um fato fundamental: como a família Lispector aprendeu português e como a mistura de línguas seria vivida pela futura autora de "Perto do Coração Selvagem".
Também não esclarece pontos obscuros da vida amorosa da escritora (como sua relação com Paulo Mendes Campos) nem faz referência ao presente mais próximo de seus amigos e parentes.
Há pequenas contradições entre um texto e outro. Por exemplo: o de Nádia Gotlib afirma que Pedro Lispector, pai de Clarice, morreu depois de uma cirurgia de cálculo renal; já o de Teresa Ferreira diz que a cirurgia foi de vesícula.
A mesma obra peca ainda num aspecto importante: a citação de fontes é precária, há poucas notas de rodapé. Enquanto no livro de Nádia os autores dos depoimentos vão sendo identificados ao longo do texto, toda vez que falam, no de Teresa poucas vezes se sabe quem disse o quê à biógrafa.
O texto ganha uma informalidade, um ar de invenção que lhe retira um pouco do tom de verdade documental necessária e típica do gênero. A impressão final é de que se está um pouco no ar, que quanto mais se lê biografias de Clarice, mais distante se fica dela.
Mas isso não se deve ao "mistério" de Clarice. É que ainda falta à biografia brasileira o espírito insaciável e rigoroso do pesquisador americano ou inglês.

Livro: Eu Sou uma Pergunta - Uma Biografia de Clarice Lispector Autora: Teresa Cristina Montero Ferreira Lançamento: Rocco Quanto: preço não definido (308 págs.)


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